São Paulo será “estado caloteiro” se Alckmin pagar desapropriações por valor venal, diz OAB

Na opinião de representante da OAB, medida do governador paulista de desapropriar imóveis por valores muito menores dos reais poderia suscitar seu impeachment

São Paulo – A tentativa do governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) de desapropriar imóveis por valores muito abaixo do real atenta contra a Constituição Federal e contra a democracia. A medida, solicitada pelo tucano ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), no mês de fevereiro, também vai burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal. A avaliação é do vice-presidente da Comissão de Dívida Pública da OAB-SP, Marco Antônio Innocenti.

“Quando o governo não paga o valor real do bem que está desapropriando vai gerar uma indenização futura, que não vai ser o governador atual que vai pagar. Ele deveria pagar as desapropriações que ele está fazendo, isso é o que exige a própria Lei de Responsabilidade Fiscal: não pode aceitar que o governo onere excessivamente os governos futuros”, explicou o representante da OAB.

Embora os governos municipal, estadual e federal tenham poder para realizar desapropriações, essas não podem ser feitas de forma irresponsável, porque causam desorganização financeira ao estado que mais tarde terá de arcar com os processos movidos pelos proprietários de imóveis afetados. “Isso desorganiza os fins do estado. Você vai deixar para o futuro o pagamento de uma dívida que você não vai saber quanto é”, disparou Innocenti.

A ADPF do governo de São Paulo pede a suspensão de todas as ações do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que contrariem o artigo 15 e seus parágrafos 1º, 2º e 3º do Decreto-lei 3.365/1941 e declaração de constitucionalidade dessa legislação. O decreto é conhecido como Lei de Desapropriações e permite, nos processos de desapropriação por utilidade pública em regime de urgência, a imissão (ato judicial pelo qual a posse de um bem é entregue a determinada pessoa ou ente jurídico, com causa negocial ou legal) provisória na posse de imóvel, sem avaliação prévia, mediante depósito de quantia arbitrada pelo juiz competente, independentemente da citação do dono do imóvel.

As desapropriações também causam verdadeiros “dramas familiares”, apontou Innocenti, que também é secretário da Comissão de Relações Institucionais do Conselho Federal da OAB. Para ele, o governo pode transformar São Paulo num estado “caloteiro” e aumentar ainda mais a dívida de precatórios do estado, que junto com o município já responde por 50% dos precatórios de todo o país. “É chocante como se pretende deixar vulnerável a Constituição e a própria democracia”, criticou. 

“Se o governo tem R$ 100 e quer desapropriar R$ 300, ele não pode fazer. O jeito é revigorar uma lei morta de 1941, editada em momento em que a avenida Paulista nem existia e voltar ao passado ao se permitir esse endividamento exacerbado do poder público”, analisou o integrante da OAB.

Confira a entrevista de Marco Antônio Innocenti na íntegra:

O governador de São Paulo Geraldo Alckmin ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal, que se aprovada vai permitir que as desapropriações de imóveis no estado sejam pagas com base no valor venal, sem perícia, e com imissão (transferência do bem) imediata. Qual a avaliação da OAB sobre essa ação do governo estadual?

É um retrocesso enorme porque fará com que a dívida dos precatórios que já é altíssima seja ainda maior nos próximos anos porque quando o governador não paga o valor real do bem que ele está desapropriando vai gerar uma indenização futura que não será ele quem vai pagar. Ele deveria pagar as desapropriações que ele está fazendo. Isso é o que exige a Lei de Responsabilidade Fiscal. Não se pode aceitar que o governador (atual) onere excessivamente os governos futuros.

Com essa medida, o governo pretende ressuscitar uma lei de 1941?

O governador está pedindo que o Supremo torne válida uma lei de 1941 (Decreto-lei 3.365/1941, conhecido como Lei de desapropriações), quando a realidade econômica, política e jurídica era muito diferente da atual. Hoje em dia não existe margem para essas manobras. Vivemos em uma democracia plena. Essa legislação é um retrocesso. Ela é a causadora do que temos nos dias de hoje –  o descontrole total do pagamento dos precatórios. É uma coincidência justamente que essa legislação, que deixou de ser aplicada por conta da nova Constituição, tenha gerado o problema atual. O problema dos precatórios surgiu de distorções originadas disto: desapropriações que foram feitas e não eram pagas. As pessoas (desapropriadas) vão discutir judicialmente. No final do processo daqui a 10 a 15 anos, elas vão receber precatórios e esperar mais 20 anos para receber. Então isso é um retrocesso, pena que o governador do maior estado pense dessa forma.

Qual a alegação do governador na ADPF?

A alegação do governador é de violação da segurança jurídica e é absurda. Alegar que o estado é prejudicado por não ter segurança jurídica para aplicar uma lei de 1941 – que é absolutamente inconstitucional – frente à Constituição de 1988, é ignorar muito as coisas mais básicas e achar que o Supremo é um departamento do governo do estado de São Paulo.

E os direitos dos cidadãos?

O cidadão está sendo expropriado. Isso na verdade tem um quê de muito totalitário. Esse tipo de situação só acontece em lugares que são politicamente atrasados, em governos ditatoriais que impõem sanções a seus cidadãos negando direitos que são básicos à cidadania. Nossa Constituição impõe isso nas desapropriações: o Estado tem poder mas também o dever de indenizar pelo valor real, atual.

A quem interessa essa ação?

Isso é bom para o governo dele, promoção pessoal dele (Alckmin). Não é bom para ninguém. Nem estado, nem cidadão. É bom para autopromoção dele. Isso faz com que o estado seja um estado caloteiro, que não paga as coisas mais óbvias, que deveriam ser pagas em primeiro lugar que são os direitos dos cidadãos. Quando você expropria, tira alguém da sua casa, retira um imóvel de alguém que vive de renda, do aluguel, desapropria uma propriedade rural, uma planta industrial faz uma intervenção grande na vida das pessoas. Isso tem repercussão muito grande econômica e social. No mínimo deveria indenizar imediatamente como manda a Constituição de forma prévia. Então só imite-se a posse desse imóvel mediante pagamento da prévia e justa indenização que é o valor real do imóvel. Um estado que deve para uma pessoa e não paga é um estado caloteiro. A dívida dos precatórios enfrentada hoje envolve verdadeiros dramas familiares. O tempo vai fazendo as pessoas perderem um pouco a lembrança disso. Mas os problemas dos precatórios hoje, a dívida que o estado tem hoje é resultante da mesma irresponsabilidade que o governador quer agora aplicar novamente.

Se a iniciativa for acolhida pelo Supremo, abre precedentes em todo o país?

Se isso for aprovado pelo Supremo vai abrir precedente para todos os governos fazerem isso, num momento em que o Brasil vai sediar diversos eventos que vão demandar uma quantidade de obras muito grande. Tem um inimigo político, desapropria e deixa o cara gritar. O Alckmin agir assim é um absurdo. Acho que a pretensão dele deveria suscitar na Assembleia Legislativa (Alesp) o requerimento de impeachment dele. Quando ele faz isso atenta contra a democracia, contra o expropriado e principalmente contra a democracia e a Constituição. Isso desorganiza os fins do estado. Você vai deixar para o futuro pagamento de uma dívida que você não vai saber quanto é, porque você não vai ter de pagar por ela. É um cheque em branco que se o Supremo assinar, quem vai pagar as contas somos nós.

A OAB vai pedir ao STF para atuar como amicus curiae (amigo da Corte) no processo que vai julgar o pedido do governador Geraldo Alckmin?

Nós ainda não fizemos esse pedido. Ele está em análise pelo Conselho Federal da OAB e deve em breve ser deferido. A atuação da OAB, acredito que também da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), é mostrar ao Supremo que essa legislação que se quer revigorar é manifestamente inconstitucional. A segurança jurídica que está sendo invocada pelo estado, deve ser observada em favor dos proprietários de imóveis que podem ser desapropriados e não receberem o valor total dos imóveis. Isso só acontece em regimes ditatoriais que restringe as pessoas a todo tipo de privação. Os cidadãos do Brasil não podem aceitar.

Em que patamar estão as dívidas dos precatórios do estado de São Paulo?

Todos os imóveis que estão na mira da desapropriação em São Paulo, são na área urbana, como as obras do Metrô. Em cinco ou dez anos, a questão dos precatórios será mais insustentável do que é hoje. O estado de São Paulo junto com a cidade de São Paulo deve metade dos precatórios do Brasil, que é quase de R$ 40 bilhões. É muito. No Brasil inteiro a dívida é de R$ 80 bilhões. Como pode estado e capital deverem juntos quase metade do valor do país? É demais. E aí, ao se promover uma medida dessa, se pretende escapar da Lei de Responsabilidade Fiscal que limita o endividamento. Se o governo tem R$ 100 e quer desapropriar R$ 300, ele não pode fazer. O jeito é revigorar uma lei morta de 1941, editada em momento em que a avenida Paulista nem existia e voltar ao passado ao se permitir esse endividamento exacerbado do poder público. Construímos ao longo de 50 anos instrumentos para conter esse tipo de atitude desenfreado de administradores públicos. Além da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Constituição tem regras rígidas. Isso é manobra antidemocrática que fere de morte a Constituição Federal. Na minha opinião, e de juristas com os quais tenho conversado sobre o assunto, acho que isso suscita até uma medida pela Alesp que pode até levar ao impeachment do governador. Agora, o estado tem o direito de desapropriar as pessoas, com metade do valor do que vale o imóvel, com 40% e às vezes até menos, 30%, do valor que vale o imóvel? Será que o estado mais rico da federação pode ter um governador que autorize fazer isso? Isso é uma loucura.

Como o morador de São Paulo pode se proteger? Ele pode mudar o valor venal de seu imóvel?

Esse valor pode ser atualizado anualmente pela prefeitura, que hoje trabalha com um valor de referência, um pouco acima do valor venal. O problema é que o mercado é quem faz o preço. O lançamento do valor venal é feito pela prefeitura para efeito de tributar propriedade, não é exatamente valor comercial do imóvel, porque teria de fazer a atualização do valor venal todo mês. Só que nos últimos quatro anos os imóveis triplicaram de preço. Nesse caso teria de ter atualização mensal. O cidadão fica refém dessa situação num momento de valorização do mercado. É chocante como se pretende deixar vulnerável a Constituição e a própria democracia.

O governador faz críticas à adoção da Súmula 30 por parte dos magistrados paulistas. Do que ela trata?

A súmula 30, analisando a legislação de 1941 chega à conclusão de que essa legislação não é compatível com a Constituição Federal de 1988 que é profundamente diferente da antiga Constituição de 1967. Quando ela institui que a justa indenização tem de ser prévia, ela está dizendo que para desapropriar o governo tem de ter recursos, não pode desapropriar com parte do preço, ele tem de pagar ao cidadão, o valor integral da propriedade. Então, o Tribunal de Justiça editou uma súmula, que só é editada depois de repetidas decisões conferidas no mesmo sentido por um tribunal. O TJ analisou centenas de casos iguais e vinha decidindo no seguinte sentido: o estado quer imissão da posse de determinado imóvel, requer isso na Justiça, o juiz manda o perito fazer uma avaliação do imóvel, num prazo de 30 a 60 dias, e apresentada essa avaliação prévia, o estado é obrigado a depositar o valor integral apurado por essa perícia. Depositado o valor, o juiz imite o estado ou a prefeitura na posse do imóvel. A partir de então, esse valor é levantado pelo proprietário. O estado ou o cidadão vão brigar por alguma eventual diferença que possa ter em relação ao valor apurado pelo perito. Pode haver uma diferença tanto a favor como contra o cidadão. Essa medida fez com que nos últimos 10 anos não houvesse mais precatórios com valores significativos, resultantes dessas desapropriações porque não havia diferença. O estado ou a prefeitura depositavam o valor integral, o proprietário apurava e estava todo mundo satisfeito. O estado ficava imitido na posse, o proprietário recebia o valor integral, uma baita economia de tempo para o Judiciário. Essa prática resultou na edição, pelo TJ-SP, da Súmula 30 que diz que para a imissão na posse, o estado deve depositar o valor integral apurado na avaliação prévia para a desapropriação.

Colaborou Vanessa Ramos

 

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