Outro mundo é necessário. E urgente

Conferência no México confirma que as discussões sobre as mudanças climáticas são o novo foco do altermundismo, uma década depois das grandes manifestações contra o livre comércio – confira conteúdo expandido para a internet

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De 1999 a 2001, na alvorada do século 21, entre manifestações contra o livre comércio em Seattle e Gênova e o nascimento do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o mundo viu o surgimento do lema “Um outro mundo é possível”. De lá para cá, muitas coisas mudaram. Sobretudo, uma onda vermelha varreu a América Latina, e iniciativas como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e negociações no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC) foram enterradas. Uma crise mundial do capitalismo ainda faz cambalear os países do Norte. E, não por acaso, o mundo se vê às voltas com o que parece ser o grande efeito colateral da falta de freios do capitalismo mundial nas últimas décadas: o aquecimento global.

Em Cancun, México, durante a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP-16), em dezembro, nas manifestações de milhares de representantes de movimentos sociais e ONGs do mundo todo ecoou a frase que parece marcar a nova etapa do altermundismo. “Um outro mundo é possível, necessário e urgente”, resumiu o teólogo brasileiro Leonardo Boff ao discursar em um dos eventos paralelos à COP. Ele repetia mote que já começava a aparecer no Fórum Social Mundial de 2010, na boca de gente como o professor português Boaventura de Sousa Santos.

Uma vez mais, os países ricos empurraram com a barriga a decisão sobre a renovação das metas do Protocolo de Kyoto – o qual impõe, desde 2005, e até 2012, que os países ricos diminuam suas emissões dos gases de efeito estufa, causando aquecimento do planeta. Também mantiveram abaixo do esperado suas ofertas de ajuda internacional para combater os efeitos do aquecimento – US$ 100 bilhões anuais, mais uma doação inicial de US$ 30 bilhões, para o chamado Fundo Verde, quando o G77, grupo dos países em desenvolvimento, pedia US$ 600 bilhões, e o Banco Mundial calcula em pelo menos US$ 400 bilhões anuais a necessidade de dinheiro para obter resultados efetivos na tarefa de frear os efeitos das mudanças climáticas.

Forçaram, ainda, a decisão de entregar o dinheiro à administração do Banco Mundial, instituição desmoralizada perante muitos dos países do Sul. E, finalmente, abriram caminho para ampliar a utilização de instrumentos de mercado nas ações de enfrentamento das mudanças climáticas, com a aprovação do mecanismo REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) – o qual, uma vez formatado, poderá permitir a inclusão da preservação de florestas no chamado mercado de créditos de carbono, pelo qual países e empresas que têm obrigação de diminuir suas emissões podem deixar de fazê-lo ao sustentar projetos ambientais em países em desenvolvimento.

Com diferentes graus de restrição, grande parte da sociedade civil que participa dos debates critica a adoção desse mercado. “Quando se abre para o mercado, a tendência é que se peça algo em troca”, resume Maureen Santos, da ONG brasileira Fase. “A solução verdadeira é os países do Norte diminuírem suas emissões de carbono. O resto é hipocrisia”, emenda Marlon Sanches, presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie).
“O mercado não é o espaço capaz de assumir a responsabilidade sobre a vida no planeta”, dizia, já em 2009, a Carta de Belém, assinada por pelo menos 30 organizações brasileiras. “Os países poluidores têm a obrigação de transferir de maneira direta os recursos econômicos e tecnológicos para pagar a restauração e a manutenção dos bosques e florestas”, reforça o chamado Acordo dos Povos, resultante de reunião da sociedade civil internacional em Cochabamba, Bolívia, em abril de 2010.

A próxima reunião da COP deverá se realizar na África do Sul em 2011, e em 2012 a conferência Rio+20, que celebrará no Rio de Janeiro os 20 anos da ECO-92, também deverá aumentar as atenções sobre o tema. Ou seja, a tendência é que as discussões decisivas sejam realizadas nos países do Sul, com um nível de pressão popular que, ao que tudo indica, deve crescer.

Na própria pele

O debate público sobre as mudanças climáticas só tem se ampliado desde a divulgação do quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), em 2007, o qual alertou o mundo para a velocidade alucinante com que o problema tem evoluído e jogou no colo das nações do Norte a responsabilidade de tomar providências imediatas – já que, historicamente, elas foram as principais emissoras de gases causadores do efeito estufa, e particularmente o dióxido de carbono (CO2), relacionado à queima de combustíveis fósseis, como o petŕoleo.

Em 2009, na COP-15, em Copenhague (Dinamarca), já era forte a presença de ativistas. Mas, quando um evento como esse é realizado em plena América Latina, os rostos indígenas, negros e camponeses se impõem na luta pelo que tem sido chamado de “justiça climática”. Cada participante carrega uma história que mostra as consequências ambientais do avanço desenfreado do capitalismo.

“Hoje, o Haiti vive uma situação de desordem climática. Às vezes, temos de seis a sete meses de seca e, na sequência, uma semana de inundação”, conta Chavannes Jean-Baptiste, diretor do Mouvement Paysan de Papaye (MPP), do Haiti. Filho de camponeses, ele segue vivendo no campo, na região de Inche. “2010 foi catastrófico. Em janeiro tivemos o terremoto, e há dois meses um furacão destruiu muitas plantações”, lamenta. “O camponês haitiano não entende esse conceito de ‘mudança climática’, mas vê que há muita praga nas plantas, sente a seca, as inundações.”

A indígena boliviana quíchua Julia Ramos Sánchez chegou a ser ministra de Desenvolvimento Rural e Terras de seu país até 2009. Hoje milita na Bartolina Sisa, organização de mulheres indígenas e camponesas. “Estamos combatendo as mudanças climáticas ao lutar por nossas próprias políticas de desenvolvimento, que valorizem os conhecimentos ancestrais”, diz.

Ela conta que, em sua comunidade – Ancon Grande, na fronteira com a Argentina –, vivem 50 famílias, todos pequenos agricultores, que atualmente sofrem pela seca e pela falta de terra. “Está ocorrendo uma enorme migração climática por conta das secas, que inviabilizam a produção. As comunidades estão ficando vazias, os jovens se vão, porque não há água, os rios estão desaparecendo, os arroios secando, os animais morrendo.”

“O maior desafio são as secas por longos períodos”, relata a masai Nanta Mpaayei, da organização Mainyoito (MPIDO), do Quênia. “Na seca que tivemos em 2009 perdemos 70% do rebanho da minha comunidade, entre vacas e ovelhas. A seca tem sido tão severa, que não há água, não há grama, não há pasto”, relata.

“Antes das mudanças, tínhamos a água e os rios. Agora minha mãe compra água. Ela tem sorte de poder comprar, pois eu a ajudo. Outras mulheres da minha comunidade têm que andar mais de 20 quilômetros para conseguir 20 litros de água”, continua. “Quando era criança nunca pensava que algumas coisas chegariam a esse ponto. Meus parentes podiam dizer quando a próxima seca aconteceria. Agora não podem. Quando pensam que vai chover, vem o sol. Quando era para vir o sol, vem a nuvem de chuva. O sistema inteiro sofreu interferência. Está uma bagunça a vida nas comunidades. Sabíamos que a cada 10 anos vinha uma seca forte. Mas agora é continuo: em 2006 tivemos uma, depois 2007, 2009, 2010.”