Discursos de pré-candidatos mostram como será integração regional no pós-Lula

Analistas entendem que, embora muito da política externa caiba ao Itamaraty, José Serra significaria mudança no tratamento com economias menores da região

Os presidentes da Bolívia, Evo Morales, e do Paraguai, Fernando Lugo, conseguiram negociar acordos com o Brasil (Foto: J. Lirauze. ABI / Governo do Paraguai)

São Paulo – Os principais pré-candidatos às eleições presidenciais deste ano ainda não divulgaram os programas de governo, mas as últimas declarações de José Serra (PSDB) e de Dilma Rousseff (PT) começam a delinear como será a política externa brasileira a partir de 2011.

As falas mais fortes até agora vêm do pré-candidato tucano que, primeiro, afirmou que gostaria de “flexibilizar” o Mercosul, que o ingresso da Venezuela no mercado comum do Cone Sul seria uma insensatez, e que o governo da Bolívia é cúmplice do tráfico de drogas. A última declaração em especial gerou discussões mais fortes. O Ministério de Relações Exteriores boliviano emitiu comunicado rechaçando as declarações e atribuindo as mesmas ao contexto eleitoral, e não a uma proposta em si.

Dilma Rousseff, pré-candidatada do PT, acusou o rival de “demonizar” a Bolívia. “Não é possível, de forma atabalhoada, a gente sair dizendo que um governo é isso ou aquilo. Não se faz isso em relações internacionais. Não é papel de estadista ou de quem quer ser um estadista”, acusou.

O mesmo país integrou as discussões sobre política externa em 2006. Ainda sob a luz da renegociação dos contratos de fornecimento de gás boliviano, o então candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, chegou a dizer que o Brasil foi humilhado pelo vizinho. “O episódio da Bolívia foi muito ruim porque criou na América Latina uma insegurança. A posição do Brasil foi dúbia, submissa, tinha que ser muito clara, condenando o que foi feito”, afirmou.

Na ocasião, durante debate, Lula afirmou que Alckmin agia como se estivesse na época da Guerra Fria. “Esse país conquistou autoridade moral. A Bolívia fez com o gás dela o que todos os países fizeram com o petróleo. O Brasil tem de ser justo com a Bolívia na negociação. Já houve tempo em que a bravata com os países pobres predominava, agora não, agora é parceria”, afirmou.

Prioridade

Um dos traços da política externa da atual gestão é o reforço das relações com os vizinhos e com as nações do Sul mundial como um todo. Outro exemplo regional que colocou PT e PSDB de lados opostos foi a revisão dos contratos de energia com o Paraguai envolvendo a hidrelétrica binacional de Itaipu. O governo brasileiro aceitou rever para cima as tarifas, em julho de 2009, em um momento no qual o presidente Fernando Lugo enfrentava dificuldades internas e precisava cumprir uma de suas promessas de campanha.

A efetiva elevação das tarifas depende ainda de aprovação do Congresso. Ao que tudo indica, os tucanos não pretendem facilitar a aprovação. Em discurso no mês de abril em plenário, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) apresentou o argumento de que o acordo dá aos paraguaios um dinheiro que deveria ser investido por aqui. “Não é possível que o Brasil vá tirar dos brasileiros quase R$ 3 bilhões para entregar ao Paraguai, para fazer a vontade de um candidato à presidência daquele país irmão”, afirmou.

Para que se tenha uma ideia melhor do que significam esses valores, o Brasil, na terceira semana de maio, exportou US$ 3,97 bilhões, ou mais que o adicional pago anualmente ao Paraguai. O Produto Interno Bruto (PIB) do país, aliás, é inferior a US$ 30 bilhões.

Em linhas gerais, de acordo com o histórico das duas gestões presidenciais do PSDB e da atuação do partido no Congresso, a integração regional é uma mudança fundamental da política externa de um eventual governo tucano a partir de 2011.

Maria Regina Soares de Lima, coordenadora do Observatório Político Sul-americano (OPSA) e professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), entende que é equivocada a ideia de José Serra de que o Mercosul representa um entrave aos interesses brasileiros. “Há uma ideia de que a política regional é restritiva para o país. A gente imagina que seria uma opção por uma política mais bilateral, ao contrário da política de hoje, que opera no plano multilateral”, afirma.

A questão é que o Mercosul tem, desde seu nascedouro, regras que estimulam a formação de instituições multilaterais e que, na outra mão, proíbem a assinatura de acordos comerciais mais profundos entre algum de seus sócios e nações que não integrem o bloco. É um dos motivos pelos quais o Chile, por exemplo, não quis ingressar na condição de membro-pleno.

“A postura de criar instituições multilaterais, ainda que por enquanto não tenham força no sentido de serem sólidas, é muito importante. Se o Brasil bilateralizar suas relações com a região, terá um típico comportamento de potência. Isso não pode acontecer”, pondera Maria Regina.

A dificuldade em reduzir assimetrias internas entre uma economia que está entre as maiores do mundo, o Brasil, e outras que são muito pequenas mesmo a nível regional, como Paraguai e Uruguai, explica o sentimento de que o bloco não avança. Ao longo da atual gestão foram levadas adiante algumas tentativas de reduzir essas disparidades, como o Fundo de Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do Mercosul (Focem) e a ampliação das funções do Parlasul, que deveria funcionar como o Parlamento do bloco.

Outra possibilidade de fortalecer o bloco seria a entrada da Venezuela no Mercosul. O Protocolo de Adesão do país vizinho foi rapidamente aprovado pelo Legislativo de Argentina e de Uruguai, mas enfrentou enorme oposição no Congresso. A liderança na oposição ao tema coube ao tucano Artur Virgílio (AM), que argumentava que o Brasil não poderia aceitar a entrada no bloco de um país não democrático.

A posição de tucanos e democratas somente arrefeceu com a vinda a Brasília de parlamentares opositores a Hugo Chávez, que explicaram que a pior coisa para a Venezuela seria ficar isolada. Some-se a isso os argumentos do Itamaraty de que o Mercosul é uma política de Estado, e não de governo e que, portanto, as discordâncias PSDB-Chávez não caberiam na discussão.

Itamaraty ou presidente?

Política de Estado versus política de governo é, aliás, uma discussão fundamental quando se pensa na sucessão presidencial. O Brasil tem instituições bastante sólidas no que diz respeito ao tema, anteriores inclusive à República. Logo após a independência o país começa a consolidar linhas bastante fortes em suas relações exteriores.

Nos últimos anos, no entanto, há divergências sobre quanto da política externa brasileira cabe ao Itamaraty e quanto cabe ao presidente de turno. Amado Luiz Cervo, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, entende que 90% da relação cabe ao Estado, restando ao presidente a decisão sobre temas que fujam à regra das instituições. 

Oscilações, para o docente, provêm também de visões diferentes acerca de desenvolvimento. “Se tocado por insumos e fatores preferencialmente advindos das forças externas do capitalismo, o que exige maior alinhamento com o Ocidente e com a matriz do sistema, os Estados Unidos, como nos tempos do (general) Castello Branco e de Fernando Henrique Cardoso. Ou se tocado por forças internas, um desenvolvimento mais autônomo, embora com grande grau de abertura, tendência que prevalece de 1930 a nossos dias”, argumenta.

Como aponta o professor, a gestão de FHC foi marcada por maior alinhamento aos Estados Unidos. Discutiu-se amplamente a criação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mais fortemente a partir da crise econômica dos Tigres Asiáticos, em 1997-1998, e da derrocada argentina de 2001-2002, fruto da política neoliberal.

O sociólogo e cientista político Emir Sader considera que a vitória de José Serra significaria voltar a olhar para a Casa Branca com menos independência. “Serra está a favor de se afrouxarem laços na integração regional e voltar a estabelecer relações privilegiadas com os Estados Unidos”, aponta.

O professor vê muitas semelhanças entre as visões de política externa de Alckmin e de Serra. Ele lembra que o ex-governador de São Paulo afirmou, quando Felipe Calderón venceu as eleições no México, que aquele era o rumo certo. “O caminho do México é o do tratado de livre comércio, de quem retrocedeu 7% no PIB ano passado, quem foi ao Fundo Monetário Internacional, não diversificou no comércio internacional, não intensificou distribuição de renda, mercado interno e consumo popular.”

No que cabe aos 10% dos presidentes, a visão de Lula e do chanceler Celso Amorim acerca de desenvolvimento prevê a ampliação das relações com o Sul do mundo, sem perder de vista os laços com as nações desenvolvidas. A conexão entre crescimento econômico e diversificação das parcerias comerciais leva a um enorme número de missões brasileiras mundo afora, uma das explicações apontadas por analistas para o fato de o Brasil não ter sofrido tanto com a crise financeira iniciada em 2008 – ainda não superada por muitos países desenvolvidos. Com mais parceiros para negociar e com um mercado interno mais atraente por conta das políticas de distribuição de renda, o país conseguiu evitar um resultado negativo mais drástico em 2009.

Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), entende que uma diferença fundamental entre a política externa de Lula e a de FHC é a assertividade com que o atual presidente se colocou no mundo. Apenas para citar o caso mais recente, Lula negociou, em conjunto com a Turquia, um acordo para tentar colocar fim ao impasse envolvendo o programa nuclear do Irã.

Ela avalia que o próximo presidente terá de entender que o Brasil tem agora uma política externa que está à altura de um dos três países do mundo que figuram ao mesmo tempo nos campos das dez maiores economias, populações e áreas territoriais – ao lado de China e Estados Unidos. “As pessoas vão ter de decidir qual tipo de Brasil que elas querem ver no mundo. O Brasil que a gente está vendo hoje ou o Brasil dos anos 1990, tímido e que abre mão de seu poder”, ressalta.