A Venezuela antes e depois de Chávez

Na primeira eleição em 14 anos sem o líder bolivariano, os venezuelanos apontam indicadores de que seu governo foi um divisor de águas na história do país

A Venezuela ocupa a 71ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano. O Brasil está na 85ª (Foto: Raul Arboleda/AFP)

Caracas – Com skate debaixo do braço, boné pra trás e namorada a tiracolo, Aleksei foi meu guia na primeira visita que fiz a uma favela de Caracas, a 23 de Janeiro. É um foco de resistência popular desde que foi construída, em 1956, na zona oeste da capital venezuelana. Seus blocos residenciais foram um presente do ditador Marcos Pérez Jiménez, que batizou o bairro como 2 de Dezembro para comemorar o dia em que dera um golpe de Estado. Em 23 de janeiro de 1958, seu governo seria derrubado. E os moradores rebatizaram a vizinhança com a data de sua queda – também início da mais duradoura democracia formal da América do Sul, que passará mais uma vez pelo teste das urnas neste domingo (14), desta vez sem a presença de Hugo Chávez.

Não por acaso, a 23 de Janeiro é uma das poucas periferias de um país a abrigar o corpo sem vida de um presidente da República: o do próprio Chávez, levado para o quartel da Milícia Bolivariana no alto de um de seus morros até haver uma decisão sobre o destino definitivo dos restos mortais. No bairro existem coletivos autogestionários e guerrilhas armadas remanescentes dos anos 1970 e 1980. 

Na ausência de inimigos políticos, o arsenal serve basicamente para autoproteção – inclusive para fins menos nobres, como eliminar traficantes. O 23 ostenta seus próprios mártires, lembrados em praças e afrescos castigados pelo tempo. São vítimas de uma repressão que parece não mais existir.

“O melhor de Hugo Chávez é que, com ele, finalmente tivemos liberdade”, atesta o morador Gustavo Rodríguez, assinalando o que considera a maior virtude do ex-presidente. Aos 60 anos, é uma das lideranças da Coordenadora Simón Bolívar, um dos coletivos que atuam na vizinhança. Faz algum tempo, tomaram posse do edifício onde funcionou um quartel da polícia, “já levei umas surras aqui dentro”, e montaram uma rádio comunitária. Atendendo a pedidos dos moradores, o governo federal instalou no local um Infocentro, com computadores, internet e cursos para a comunidade, e um escritório para tirar documentos e resolver pequenas burocracias.
Favela 23 de Janeiro - Caracas (Tadeu Breda)

Foco de resistência, a favela 23 de Janeiro recebeu o corpo do ex-presidente (Foto: Tadeu Breda/RBA)

Não é à toa que imagens e slogans que remetem a Hugo Chávez estão espalhados por todos os lados. As menções são tão numerosas nas favelas quanto inexistentes nas regiões mais ricas. A capital venezuelana é dividida em duas. Nas subprefeituras de Baruta, Chacao, Hatillo e Sucre domina a oposição, representada por uma coalizão de partidos chamada Mesa de Unidade Democrática (MUD). 

No centro e na zona oeste, região conhecida como Libertador, o governo fica com o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Amar ou odiar a figura do ex-presidente – e tudo o que representa – é questão de classe. Claro, existem pobres que não votam no chavismo e gente de renda elevada que o apoia. Há inclusive uma nova elite que floresceu à sombra do governo bolivariano: a chamada boliburguesia. Batalha de comunicação

Com 6 milhões de habitantes, Caracas é um lugar aparentemente irreconciliável. Chavistas e antichavistas têm um sem-número de argumentos para canalizar suas emoções. Entre radicais e moderados, a maioria, porém, continua sendo chavista. A MUD tem poucos representantes na Assembleia Nacional, controla apenas três dos 23 estados e não está tão estruturada quanto gostaria. A maior força da oposição está na mídia. 

Quem liga a tevê na Globovisión ou abre os jornais El Nacional e El Universal percebe facilmente. Mas, se chovem críticas na mídia tradicional, despeja-se uma tempestade de elogios sobre o telespectador que sintoniza as emissoras estatais. Depois que sofreu uma tentativa de golpe de Estado, em 2002, o presidente se deu conta de que era preciso construir canais de comunicação direta com o povo.

Habitação popular: desde 2010, o governo entregou 350 mil residências. Neste ano, serão mais 380 mil (Foto: Divulgação)
Habitação Popular - Caracas (Divulgação)

Enquanto Chávez tinha uma arma apontada contra a cabeça, as redes de tevê noticiavam sua “renúncia” e transmitiam a posse do líder golpista, Pedro Carmona. E dá-lhe novela para transmitir aos venezuelanos uma completa sensação de normalidade. Agora, o chavismo conta com um imenso aparato comunicacional que inclui estações de rádio e tevê, agências de notícias, portais e jornais diários.

“Na Venezuela, a batalha política é também midiática”, explica Robert Vinache, 23 anos, aluno da Escola de Meios e Produção Audiovisual de Caracas (Empa), inaugurada há seis anos pela prefeitura caraquenha junto a uma emissora pública local chamada Ávila TV, ambas encampadas posteriormente pelo governo nacional. “Somos o único canal-escola do país e talvez da América Latina”, orgulha-se a diretora de formação do instituto, Yajaira González. “Todos os nossos estudantes são provenientes de bairros pobres.” 

São jovens que chegam à Empa loucos para mostrar o profundo processo de transformação vivido pelo país – e por eles mesmos – nas periferias. E, se não conseguem vagas no sistema nacional de meios públicos para trabalhar, podem recorrer a rádios e tevês comunitárias que falam de realidades até então invisíveis pelo padrão loiro-branco-olhos azuis da imprensa comercial.

“Mas as emissoras populares sobreviverão apenas se não tomarem posições muito críticas em relação ao governo”, acredita a coordenadora de comunicação da ONG Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea), Paola Salcedo,. “Existe liberdade de expressão na Venezuela, mas ao mesmo tempo se observam alguns impedimentos para que possa ser exercida em sua plenitude.” 

Paola desanda a falar que o canal RCTV foi fechado injustamente; que repórteres das emissoras contrárias ao chavismo não são convidados para entrevistas oficias; que o jornal El Nacional foi obrigado a ficar um dia fora de circulação depois que publicou fotos de um necrotério público abarrotado de cadáveres; e que jornalistas sofreram retaliações em algumas rádios depois de criticar o governo. “É um claro sinal de autocensura”, analisa.

Questiono se as mencionadas limitações à liberdade de imprensa não poderiam ser interpretadas como uma reação à participação da mídia no golpe de 2002. Paola concorda que as emissoras descumpriram obrigações inerentes a uma concessão pública, mas… “Sob o ponto de vista da política, podemos até compreender as atitudes do governo. Contudo, sob a ótica dos direitos humanos, não é possível justificar nenhum cerceamento à informação”, analisa.

Caracas - Médicos (Tadeu Breda)

A Venezuela troca seu petróleo pela assistência de profissionais da área médica cubanos, acomodados em consultórios/residência espalhados pelos bairros pobres
(Foto: Tadeu Breda/RBA)
 

Médico na esquina de casa

A conturbada relação de Hugo Chávez com a imprensa é apenas a ponta mais visível do imenso iceberg que sustenta a revolução bolivariana. Nas periferias estão bases mais sólidas do regime. Deparei com uma delas – talvez a principal – caminhando com Aleksei, seu skate e sua namorada pela 23 de Janeiro.

Um “exército” de jalecos brancos enviados por Havana ocupa as quebradas da Venezuela. Cuba manda médicos e o chavismo retribui com petróleo, sua maior riqueza econômica. O resultado do escambo é visível. Apenas no centro e na zona oeste de Caracas, as mais carentes da cidade, trabalham 2.689 profissionais de saúde cubanos, entre os quais 552 médicos. Em todo o país estão em atividade 17 mil doutores e outros 17 mil enfermeiros, fisioterapeutas, laboratoristas formados na ilha. Compõem a mão de obra do programa que leva medicina a pessoas que nunca nem em sonho haviam pensado em ver médicos e hospitais na esquina de casa.

Basta caminhar pelo bairro para topar com pequenos consultórios, os módulos, onde a vizinhança recebe atenção primária e preventiva. São casinhas minúsculas de bloco pré-fabricado com dois pavimentos. Na parte de baixo ficam consultório, sala de espera e banheiro. Em alguns há cadeira de dentista. Os médicos moram na parte de cima, uma quitinete com cozinha e banheiro. Trabalham oito horas por dia, mas não sonegam suas habilidades caso alguém precise de socorro durante a madrugada.

Consegui visitar as instalações da Missão Bairro Adentro depois de pedir autorização ao governo cubano. Bastou enviar um e-mail à embaixada e trocar três ligações com os responsáveis pelo programa: no dia seguinte, tinha uma sugestão de itinerário e um carro iraniano me esperava. Acompanhado pelo doutor Reynier, vice-chefe da missão médica cubana em Caracas, saí rumo às instalações hospitalares de Montalbán, zona pobre a oeste da capital.

Já nos esperava o doutor Padilla, diretor do Centro Médico de Alta Tecnologia. Depois assistir a uma projeção de slides, visitei todas as salas e conversei com cinco médicos pré-selecionados para me atender. Responderam a todas as minhas perguntas, mas os superiores não saíram do meu pé. É difícil saber se os cubanos foram totalmente sinceros quando questionei se estavam felizes trabalhando nas periferias caraquenhas, com uma rotina tão rígida e limitada não apenas pelas regras do governo cubano, mas também pelo entorno violento.

“A medicina é uma carreira muito humana, e nossa tarefa como médicos formados em Cuba é ajudar os demais países que ainda não conseguiram se desenvolver na área da saúde. Estamos dispostos a ir a qualquer lugar do mundo. E não porque somos pressionados ou obrigados pelas autoridades: temos vontade de levar nosso conhecimento à população que mais precisa”, contou o doutor Bernardo. “As pessoas aqui nunca haviam visto um médico subir o morro. Por isso, não querem que a gente vá embora.”

Missa Sucre - ensino superio (Divulgação)O programa que trouxe medicina cubana para as periferias é apenas uma das chamadas missões bolivarianas impulsionadas durante os 14 anos de governo Chávez. Existem mais de 20. 

Missão Sucre: programa transformou país na quinta nação com maior número de matriculados no ensino superior (Foto: Tadeu Breda)

Outra que conta com a ajuda de Cuba é a Missão Robinson, proposta para alfabetizar a população. Em 2005, a Venezuela foi declarada território livre de analfabetismo pela Unesco. A Missão Sucre criou universidades e transformou o país na quinta nação com maior número de matrículas no ensino superior.

Outro projeto, a Grande Missão Vivenda, começou a trabalhar na construção de moradias populares depois que milhões de venezuelanos perderam a própria casa devido a fortes chuvas ocorridas em 2010. Chávez não titubeou em instalá-los em hotéis, prédios vazios, edifícios governamentais e até mesmo no Palácio de Miraflores. De lá para cá, graças ao imenso fluxo de caixa possibilitado pelo petróleo, foram entregues 350 mil residências. Neste ano, serão mais 380 mil. A meta é construir 2 milhões de casas até 2017.

Persiste a violência

Os maciços investimentos sociais do chavismo – auxiliados por taxas de crescimento econômico que em 2004 chegaram a 17% – possibilitaram que a pobreza venezuelana fosse reduzida em 20 pontos percentuais entre 1999 e 2012, passando de 49% para 29% da população. A Venezuela ocupa hoje a 71ª posição no ranking mundial do bem-estar, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O Brasil está na 85ª.

Mas a evolução social não foi acompanhada de queda nos índices de violência um dos problemas mais graves do país. O índice de homicídios na Venezuela gira em torno de 45 por 100 mil habitantes. Em Caracas, chega a 108 por 100 mil – taxa que a coloca entre as cidades mais perigosas da região. Cerca de 500 presidiários perdem a vida todos os anos dentro das casas de detenção venezuelanas.

“A violência tem crescido em toda a América Latina, com exceção de Brasil e Colômbia”, afirma Andrés Antillano, psicólogo e criminologista da Universidade Central da Venezuela (UCV). “Os índices de criminalidade no país tiveram muito mais a ver com desigualdade social do que com pobreza, mas mesmo essa relação parece não funcionar como se imaginava. Talvez seja um erro pensar que apenas ampliar o acesso aos direitos sociais pode reduzir a violência.” Antillano afirma ter detectado em suas pesquisas que grande parte da juventude pobre nas grandes cidades sequer é chavista. Tampouco oposicionista. “São despolitizados”, define, “e veem o crime como uma maneira de ganhar respeito e incluir-se socialmente”.

Pelas ruas da 23 de Janeiro, Gustavo Rodríguez conta que de tem de gastar o verbo para convencer os jovens das benesses trazidas pelo chavismo. O problema, segundo ele, é que têm pouca idade e não se lembram de como era a vida antes de Hugo Chávez. “Para quem viveu as duas coisas, está claro que agora estamos muitíssimo melhor.”

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