‘O texto é bom, mas não garante segurança jurídica’, diz mentor da lei de comunicação no Equador

“Não dá pra saber se a confrontação entre governo e meios de comunicação ajudou ou prejudicou”, questiona Romel Jurado

“Caminhamos para uma mudança substancial na gestão dos direitos à comunicação” (Foto: Santiago Armas/Presidência do Equador)

Quito – Romel Jurado é dos equatorianos que melhor personificam a lei de comunicação que está prestes a ser votada pelo Legislativo do país. Não apenas porque foi um dos idealizadores do texto, e talvez o maior responsável por seu conteúdo, mas também pela ponderação com que disserta sobre os motivos que antagonizam governo e mídia no país.

Há quem diga que a constante troca de ofensas entre o presidente Rafael Correa e os principais jornais e canais de tevê do Equador tem atrapalhado a aprovação da lei. Romel não descarta essa teoria, mas traz outros elementos para o debate. “Não dá pra saber se a confrontação entre governo e meios de comunicação ajudou ou prejudicou”, questiona. “Todas as vezes em que se tentou mexer com os interesses da grande mídia, a reação foi tão forte que silenciou qualquer possibilidade de mudança.”

Desta vez, o discurso onipresente dos grandes grupos comunicacionais equatorianos encontrou na estridência de Rafael Correa um rival à altura. “Se o governo não tivesse vindo com a proposta de elaborar uma lei de comunicação, é possível que as coisas continuassem iguais”, conclui. Ainda nada mudou, mas se o texto sistematizado por Romel passar pelo crivo dos deputados, as frequência de rádio e tevê passarão a ser dividas igualmente entre meios de comunicação privados, públicos e comunitários.

É um tema controverso, mas há outros, que são discutidos na entrevista a seguir. Romel Jurado recebeu a Rede Brasil Atual em seu escritório na Assembleia Nacional do Equador, onde trabalha como assessor do deputado Mauro Andino, do partido Alianza País, na Comissão de Justiça e Estrutura do Estado. Em nenhum momento escondeu sua óbvia simpatia pelo texto que ajudou a escrever, mas nem por isso esqueceu-se de levar em consideração o contexto político equatoriano antes de emitir suas opiniões.

Qual é a situação da lei dentro da Assembleia Nacional?

A Constituição de 2008 estabeleceu que a lei de comunicação deveria ser elaborada em um ano. O prazo não foi cumprido porque existe uma enorme complexidade política em torno da matéria. Governo e meios de comunicação privados trocam acusações reciprocamente. Por um lado, o presidente diz que a mídia está tradicionalmente ligada aos bancos e às empresas, e que têm intervindo na política nacional em defesa de seus próprios interesses. Essa ingerência, diz o governo, contraria totalmente o dever social dos meios de comunicação.

A mídia admite que isso é verdade, mas não em todos os casos. Diz que o presidente exagera ao colocar todos os veículos no mesmo saco e argumenta que hoje em dia é mais independente do poder econômico. Acusa Rafael Correa de autoritarismo, de ter criado meios públicos para roubar espaço dos meios privados e de interferir na programação ao decretar cadeias nacionais para fazer propaganda de seu governo. Essa confrontação atrasou a lei.

Por outro lado, é a primeira vez que o país se propõe a elaborar uma lei de comunicação. Geralmente, as leis do setor regulam apenas os serviços de rádio e televisão. Nosso desafio aqui foi entender a comunicação e legislar sobre todos os direitos a ela relacionados. Este é outro motivo do atraso, porque o debate foi ficando cada vez mais complexo e técnico, e não apenas em termos jurídicos. Fazia falta, antes, entender o que é a comunicação para depois escrever um projeto de lei.

Outro problema é que não se conseguiam as condições políticas na Assembleia nem para rechaçar a lei nem para aprová-la. No último mês de abril, mandamos o texto definitivo para ser votado em plenário. Pouco antes da votação, a oposição apresentou uma moção para arquivá-lo. E perdeu. Mas quando íamos votar a lei, a bancada governista, que é favorável ao projeto, não tinha tinha os 62 votos necessários – faltava somente um para conseguir aprovar o texto por maioria absoluta, uma vez que o parlamente é composto por 124 deputados. Esse equilíbrio ainda continua, embora a probabilidade maior é de que a lei seja aprovada.

Se o texto passar, o presidente vai exercer seu poder de veto?

O ideal é que os deputados aprovem todos os 120 artigos da lei com ampla maioria. Um respaldo massivo da Assembleia dificultaria – mas não impossibilitaria – que o presidente fizesse mudanças no texto. No Equador, o Executivo tem a prerrogativa de vetar parcialmente as leis do Legislativo. Neste caso, o projeto volta ao parlamento, mas fica muito difícil para os deputados derrubarem o veto: para isso, precisam de 82 votos. É muito. Por isso, seria excelente que os parlamentares, na impossibilidade de arquivar a lei, a aprovassem com o maior apoio possível, para limitar a possibilidade do presidente mexer no texto.

Como os deputados têm recebido o conteúdo da lei?

Todos os deputados, inclusive os da oposição, já admitiram direta ou indiretamente que o texto é equânime, que desenvolve os direitos da comunicação e se mantém dentro dos padrões internacionais. Não existem objeções conceituais à lei. A desconfiança da oposição é outra: acreditam que, se votam a favor, o Executivo certamente modificará o texto e, depois, a bancada governista não vão querer derrubar os vetos. Essa é a situação política. A votação ocorrerá quando um dos dois grupos tenha maioria. Acredito que os deputados favoráveis à lei conseguirão os votos, mas não temos certeza se aprovarão todos os artigos. Devido a um acordo da Assembleia, o texto será votado artigo por artigo. Existe um núcleo duro de artigos que será defendido fortemente pelo governo, e outros que serão votados livremente, sem negociação.

Quais artigos terão aprovação mais difícil?

A distribuição das frequências de rádio e televisão é um tema polêmico, porque implica realizar mudanças profundas na propriedade dos meios de comunicação audiovisuais. A reversão das frequências que foram obtidas ilegalmente também é um tema controverso, porque afeta os interesses de gente com muito poder econômico, político e social. Ninguém vai querer renunciar às frequências.

O instalação do Conselho de Regulação e Desenvolvimento da Comunicação é outro ponto que provoca uma tensão política muito forte. O governo sempre participou de conselhos que administram as concessões de rádio, televisão e telecomunicações, porque estes envolvem recursos e políticas públicas. Porém, devido ao alto nível de polarização política que vive o país, os meios de comunicação acreditam que a presença de um membro do Executivo seria silenciadora, autoritária e controladora.

Além do representante do presidente, o conselho terá outros cinco membros: um representante dos governos locais, dos povos indígenas, das universidades públicas de jornalismo e comunicação, de organizações dos direitos humanos e dos conselhos de igualdade. Mas não importa qual seja sua composição, a oposição sempre irá questionar e desaprovar a presença do Executivo nacional.

Há temores de que a lei possibilitará a censura, não?

Os direitos humanos e individuais devem ser respeitados. Existem alguns artigos relativos à responsabilidade dos meios de comunicação. Sempre que se publique alguma coisa, alguém deve ser responsável. Se o material não está assinado, então o meio deve responsabilizar-se pelo conteúdo. É o que chamamos responsabilidade solidária.

Se um meio de comunicação produz conteúdo discriminatório (contra homossexuais, negros ou indígenas, por exemplo) sua obrigação é prestar desculpas públicas. Essa é a sanção aplicada pelo conselho: uma punição moral. Mas se o veículo reincide pela terceira vez, o conselho começa a aplicar multas. A primeira corresponde a 10% do faturamento médio dos últimos dois meses. Mas as multas vão crescendo, pois o Estado entende que, se alguém emite reiteradamente conteúdos discriminatórios, está demonstrando um desprezo absoluto pelos direitos coletivos e individuais das pessoas – e isso não pode ser permitido, nem mesmo pelo código penal.

Outro tema conflitivo é a produção nacional. As grandes redes de televisão e os produtores nacionais associados a elas não têm muito interesse no desenvolvimento da produção audiovisual equatoriana – a não ser da sua própria. Dizer que 40% da produção deve ser nacional, e que não se computará nestes 40% a televenda, não são assuntos bem recebidos.

Há também certos direitos dos jornalistas, como a cláusula de consciência e o segredo da fonte, que são muito bem vistos por todos, mas… Os grandes meios os aceitam bastante bem na teoria, mas nem tanto na prática. A lei estabeleceu ainda direitos trabalhistas para os funcionários dos meios de comunicação para brindar-lhes algumas proteções sociais, porque é um mercado em que existe muita precarização.

Porém, não acredito que sejam artigos muito problemáticos. Como eu disse, os questionamentos não se encontram tanto pelo conteúdo do texto, mas pela polarização política do país e pelo que implica apoiar ou não apoiar a lei de comunicação.

E o que implica apoiar ou não a lei?

Muitos dizem que a lei é produto do governo nacional, que tem vocação controladora, que a estratégia dos governistas é passar um bom texto pela Assembleia para que o Executivo o modifique com seu poder de veto parcial. Existe a ideia de que apoiar a lei é soltar as rédeas para as pretensões autoritárias do presidente. Os que defendem essa tese não apoiarão a lei ainda que o texto seja maravilhoso. Por outro lado, a bancada governista argumenta que houve um longo processo legislativo, que a Constituição exige a aprovação da lei, que um referendo popular confirmou essa obrigação e é inadmissível que os deputados continuem devendo ao país uma lei de comunicação. Portanto, é uma polarização de posições políticas que não tem a ver necessariamente com o conteúdo da lei.

Então é a briga entre Rafael Correa e os meios de comunicação que está dificultando a votação e aprovação da lei?

Sim. Se o nível de enfrentamento entre a mídia e o presidente fosse menor, a lei talvez tivesse um caminho relativamente mais fácil. Talvez não, porque cada vez que mexemos no interesse dos grandes meios de comunicação, a reação é tremenda. Por isso não se pôde alterar o estado de coisas ao longo da história. Se não tivéssemos visto esse grau de enfrentamento, será que poderíamos ter avançado na elaboração da lei? Todas as vezes que tentamos corrigir as leis de comunicação, os meios silenciavam qualquer possibilidade de mudança. Por isso, não sei se a postura de Rafael Correa nos prejudicou ou beneficiou. Mas sei que, se o governo não tivesse patrocinado a lei, a situacção continuaria exatamente igual.

Pode haver abusos por parte do Conselho de Regulação e Desenvolvimento da Comunicação?

Não existem leis perfeitas que impossibilitem a ocorrência de infrações. A lei é um exercício de estruturação política e social realizado a partir de certos valores e direitos considerados importantes em determinado momento da vida de um país. Há mais dificuldade para aplicar a lei quando existe maior grau de arbitrariedade. Se as instituições de um país são administradas com arbitrariedade, ainda que a lei seja excelente, haverá atitudes arbitrárias.

Sinceramente, acredito que as fórmulas jurídicas estabelecidas na lei de comunicação são as melhores que conseguimos elaborar dentro de nossa cultura política e nível de desenvolvimento democrático. Mas não posso garantir que a lei em si mesma dê segurança jurídica à sociedade, porque as pessoas e instituições que irão operacionalizá-la – que a farão efetiva – ainda padecem de enormes margens de arbitrariedade. Isso não tem a ver com a lei, mas com a forma de exercer o poder no Equador e com a cultura política dos equatorianos, não apenas dos políticos, mas de todos os cidadãos. Infelizmente, a arbitrariedade e o exercício transgressor dos poderes públicos e privados ainda é uma norma imperante. Aqui, os poderes podem mais que as leis.

A lei de comunicação certamente funcionará bem para a maioria dos casos, mas quando houver dois grandes poderes enfrentados, o mais forte vencerá, sem dúvida. A lei tem artigos que impedem os abusos, mas o problema não é a lei. O problema é que quem aplica a lei ou se veja afetado por sua aplicação ativará seu poder para transgredi-la e desobedecê-la. E isso ainda é possível no Equador. A lei em si é boa, mas não garante segurança.

Como avalia as denúncias de que atualmente não existe liberdade de imprensa e de expressão no Equador?

Depende do que entendemos como liberdade de expressão. Vê-la apenas como livre fluxo de informações – que é o paradigma estabelecido nos Estados Unidos nos anos 1950 e adotado pelos grandes meios de comunicação – é encarar a informação como mercadoria. E, dentro do sistema em que vivemos, toda mercadoria deve circular livremente. Mas, podemos fazer uma análise mais complexa do que é informação e liberdade de expressão. As pessoas efetivamente têm direito de buscar, receber, produzir e fazer circular informação, mas em alguns casos essa informação deve ser qualificada.

Principalmente quando é uma informação de relevância pública: quando serve para que o cidadão decida sobre assuntos de seu interesse, sejam públicos ou privados de grande transcendência: a saúde de seu filho, por exemplo, ou medidas do governo que afetam à sociedade. Esse tipo de informação deve versar sobre a realidade, e não pode basear-se em rumores. Deve ser precisa e oferecer dados exatos. Deve ser produzida a partir de várias fontes, ser contrastada e contextualizada. Ou seja, a informação de relevância pública deve circular com toda liberdade, mas cumprir alguns requisitos de qualidade.

O problema é que os meios de comunicação costumam produzir informação enviesada, parcial, descontextualizada e não verificada, que, ainda por cima, obedece a seus próprios interesses. Não consigo aceitar que isso seja liberdade de expressão. Melhor dizendo, é manipulação da informação.

Vejo que Rafael Correa identificou e luta contra esse problema, mas também atende a seus próprios interesses como político. Nessa tensão entre mídia e presidente, quem perde somos nós, os cidadãos. A lei de comunicação propõe regras para que nem os poderes públicos nem os privados façam uso abusivo dos meios de comunicação – e para que todos tenham a responsabilidade de cumprir alguns requisitos e respeitar certos limites quando se trata de veicular informação de relevância pública. A lei foi pensada para beneficiar os cidadãos, mas, por sorte ou desgraça, está sendo proposta num contexto de confrontação aberta entre dois poderes titânicos.

No Equador, os meios públicos de comunicação foram criados recentemente, durante a gestão do presidente Rafael Correa. São efetivamente públicos ou seria mais correto dizer que são meios governamentais?

Todos os meios públicos do mundo nasceram sob a ingerência de algum governo, e com tendência a apoiar a administração. Com o passar do tempo, sempre existe gente dentro desses meios que começa a lutar por mais independência. E a autonomia vai sendo conquistada. No caso equatoriano, os meios públicos acabam de ser criados, e ainda estão vinculados à secretaria de comunicação da presidência. Seus funcionários têm lutado para ganhar autonomia em relação ao governo, mas ainda não venceram a batalha. Vai levar um tempo antes que consigam. Há um processo de transição que não sei quanto tempo vai demorar, mas que fará com que os meios sejam efetivamente públicos. Foi o que aconteceu em todos os países.

Como avalia a discussão e elaboração de leis de comunicação na América Latina?

Acredito que o que está acontecendo na Argentina, Uruguai, Bolívia, México e até mesmo no Brasil é uma evolução no paradigma que utilizamos para entender o papel dos meios de comunicação. Existe uma interpelação pela função social dos meios, da propriedade dos meios e do uso que se faz da comunicação. É um movimento novo. Estamos saindo da interpretação tradicional da liberdade de expressão como livre fluxo de informação para uma visão que diz: para que a liberdade de expressão seja possível, devemos criar condições materiais para que o exercício dessa liberdade se estenda a todos – e não apenas aos donos dos meios de comunicação. Acredito que esse paradigma deve ser estudado, revisado e criticado, mas parece ser irreversível. Estamos caminhando rumo a uma mudança substancial na maneira como se gestiona os direitos relacionados à liberdade de expressão e comunicação.

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