O que está acontecendo no Chile? Desmascarando o “modelo”

A educação é um direito humano fundamental, e não uma mercadoria, dizem os estudantes chilenos (Foto: El Ciudadano) São Paulo – As manifestações por melhorias na educação chilena se aproximam […]

A educação é um direito humano fundamental, e não uma mercadoria, dizem os estudantes chilenos (Foto: El Ciudadano)

São Paulo – As manifestações por melhorias na educação chilena se aproximam dos quatro meses com a mesma intensidade do início do movimento. E com muito mais apoio e conquistas. O governo de Sebastián Piñera, após inúmeras acusações, abriu negociações, e os alunos em todo o país mantêm a mobilização, prometendo promover uma nova greve geral na próxima semana.

Em artigo para a Rede Brasil Atual, Camilla Croso, coordenadora da Campanha Latinoamericana pelo Direito à Educação (Clade) e presidenta da Campanha Mundial pela Educação (CME), e René Varas, secretário-executivo do Foro Nacional Educación de Calidad para Todos do Chile, afirmam que o movimento coloca em xeque a visão do Chile-modelo e apresentam também a faceta de uma nação autoritária, que precisa se abrir aos ventos da liberdade e da democracia participativa. Confira.

O que está acontecendo no Chile desmascara o que em muitas partes do mundo acreditava-se ser um modelo educacional a ser seguido, e deve ser lido na profundidade que seus protagonistas estão expressando nos discursos que a cada dia ganham mais repercussão mundial. Há mais de três meses, o movimento estudantil do ensino superior e médio, junto com o sindicato dos professores e professoras e com multidões de cidadãos e cidadãs chilenas, clamam para que a educação seja reconhecida como direito humano fundamental e para que o Estado assuma seu papel de proteger, respeitar e realizar este direito, conforme ratificou em diversos tratados internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) ou o Protocolo de San Salvador. 

A cidadania chilena foi às ruas inúmeras vezes nos últimos meses, convocando até 700.000 pessoas em manifestações públicas. Suas demandas centrais são a gratuidade da educação pública e o fim do lucro na educação. De fato, pesquisa de opinião pública do Centro de Estudos Públicos (CEP) do Chile, de julho de 2011, demonstra que 80% da população chilena rejeita o lucro na educação. Hoje, grande parte da educação privada no país está subsidiada pelo Estado. Diferentemente da educação pública, a chamada “educação subvencionada”, mesmo recebendo recursos públicos, pode selecionar os estudantes e cobrar das famílias. O resultado é uma verdadeira segregação entre pessoas de diferentes níveis de ingresso, fenômeno que vem sendo conhecido como “apartheid educacional”. 

O movimento segue resistindo e manifestando-se porque, apesar de sua expressão massiva, não obteve até o momento uma resposta à altura por parte do governo. Este tem feito propostas que tangenciam as questões de fundo que hoje marcam a política educativa do Chile, caracterizada por uma concepção de educação como um mero mercado. Hoje, o acesso a uma educação de qualidade depende diretamente do poder aquisitivo das famílias, quando o Estado deveria garantir o gozo do direito por parte de todos e todas, levando a cabo medidas que, ao contrário do que ocorre, se orientem pelo preceito da equidade e não discriminação. De fato, a discriminação socioeconômica que hoje marca o sistema educacional chileno contraria frontalmente o artigo 2 do PIDESC, que obriga o Estado a garantir o exercício do direito sem discriminação alguma. 

Interessante que as reivindicações desmascaram o sistema que o discurso hegemônico da comunidade internacional costumava salientar como “um modelo a ser seguido”. Os argumentos a favor desse “modelo” destacam o aumento da cobertura conquistado, mas ignoram a segregação social que o caracteriza, e a assumem como inevitável e natural. Para amenizar, afirmam, respaldando-se nos resultados da prova PISA, que essa desigualdade diminuiu nos últimos anos. Sabe-se que essa pequena redução na distância entre os grupos privilegiados e os mais desfavorecidos – que se dá apenas na área de leitura, é bom lembrar – é ainda muito pouco significativa. O mesmo PISA reconhece que estamos falando do sistema mais segregado no qual é aplicada essa prova. 

Deve-se admitir o que é evidente: uma das principais barreiras à qualidade educativa é a própria segregação social produzida no interior do sistema educacional chileno. A atual distribuição dos estudantes em distintos tipos de instituições educativas de acordo com sua origem social e ingresso familiar é discriminatória e compromete uma aprendizagem em sintonia com o conjunto dos direitos humanos. Isso é válido para os conhecimentos medidos pelo PISA, mas, acima de tudo, para que se aprenda a viver em uma sociedade que valorize a diversidade e combata a desigualdade. 

As críticas ao modelo chileno que hoje vem a público são feitas há muito tempo por organismos e instâncias de direitos humanos internacionais. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, por exemplo, em um compilado de observações sobre os países da América Latina e Caribe, questionou a qualidade segmentada por condição de renda, assim como porque o governo fazia a opção política de subvencionar as escolas privadas ao invés de promover as escolas públicas e em que medida o preceito básico da gratuidade se fazia presente na educação. 

Em carta enviada no dia 24 de agosto ao atual Relator Especial para o Direito à Educação, Kishore Singh, entidades de acadêmicos e o Foro Nacional de Educação para Todos do Chile apontam que o Estado chileno não cumpre com três de seus deveres jurídicos: a progressividade, a proibição da regressividade e a proibição da discriminação. O documento aponta que não só a gratuidade da educação não progrediu tal como prevêem os instrumentos de direitos humanos internacionais. Ao contrário, a oferta de educação gratuita regrediu, bem como ocorreu com a legislação que impede o lucro e o negócio da educação. Uma expressão disso é a queda no percentual do PIB dedicado à educação: passou de aproximadamente 7% em 1970 para cerca de 4,4% atualmente.

Mas não é apenas o direito à educação que está sendo violado no Chile. É também o direito à vida e à liberdade de expressão. A crescente criminalização do movimento cidadão é da maior gravidade e já levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no dia 6 de agosto, a solicitar informações ao governo chileno sobre os episódios de violência durante os protestos do dia 4, incluindo uso desproporcional da força, detenções arbitrárias e centenas de feridos. Ao longo do mês, o uso da violência escalou, passando de bombas de gás lacrimogêneo e jatos de água a armas de fogo. Na última quinta feira, 25 de agosto, o estudante de 16 anos Manuel Gutiérrez morreu baleado com um tiro no peito. Os acontecimentos no Chile vêm repercutindo por toda a América Latina e em outros continentes, deixando em evidência que a concepção de educação como direito humano fundamental está em risco assim como o direito à livre manifestação

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