Chegou a hora de passar para a segunda fase no Haiti, diz chefe da OEA no país

Em entrevista à Rede Brasil Atual, Ricardo Seitenfus afirma que parte militar deve dar início a uma transição para o desenvolvimento haitiano

(Foto: Reprodução)

Cinco anos depois de seu início, a Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti (Minustah), chefiada pelo Brasil, cumpriu boa parte de seu papel e é hora de passar à próxima fase. Na avaliação de Ricardo Seitenfus, que desde o começo do ano é representante especial do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) no país, chegou o momento de a nação tentar, com ajuda da comunidade internacional, encontrar o caminho da democracia e do desenvolvimento.

Em entrevista à Rede Brasil Atual, o especialista em Relações Internacionais destaca que há uma sistema violações de direitos humanos da população e lembra que há 600 mil pessoas com deficiência – focando-se a OEA no atendimento a parte deles.

Entrevista

Ricardo Seitenfus

representante especial do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti

Sobre o trabalho desenvolvido pela organização, o professor destaca a distribuição de mais de quatro milhões de cédulas de identidade. “Parece algo extremamente corriqueiro, mas aqui não é”, afirma. Ele aponta que o programa de identificação será estendido a crianças e adolescentes.

Outro desafio é salvar da destruição os arquivos nacionais haitianos, com documentos históricos do país e das Américas. História que, na avaliação do chefe do escritório da OEA em Porto Príncipe, está no seio dos problemas do país, que padece também de questões naturais, como o furacão que todos os anos varre seu território.

Confira a seguir a primeira parte da entrevista concedida à Rede Brasil Atual.

RBA – Como se deterioraram as condições sociais no Haiti ao longo do último século?

Há uma série de razões, sobretudo na segunda metade do século XX. O Haiti, no fundo, tem uma história muito peculiar. Praticamente até 2000 nenhum presidente havia concluído seu mandato de forma regular. Então, a democracia é algo que não existiu ao longo da história do Haiti.

“Em razão da maneira como fez sua independência (…) o país foi isolado das Américas cultural, economica e politicamente. Ou seja, o Haiti passou duzentos anos de solidão.” – Ricardo Seitenfus

O segundo ponto é que, em razão da maneira como fez sua independência, com grande nível de violência, ao mesmo tempo em que colocou em questão o racismo e o colonialismo – no momento em que esses dois fatores eram instrumentos de dominação – o país foi isolado das Américas cultural, economica e politicamente. Ou seja, o Haiti passou duzentos anos de solidão.

A partir de 1986, há o início de um processo de aprendizado da democracia: que as forças haitianas aceitem a alternância de poder, o fato de haver partidos políticos, situação e oposição, liberdade de imprensa e a possibilidade de que existam críticas. Esse é um parto extremamente doloroso na medida em que as forças políticas haitianas e a própria sociedade foram propriamente elitistas e muito individualistas.

No entanto, houve uma diminuição extraordinária no papel do Estado em um país em que isso é muito grave. Estamos em uma situação de miséria, com 75% de analfabetos, 70% de desemprego.

“O Haiti é hoje o paraíso das ONGs, o paraíso da dívida externa. O que precisamos é reverter essa filosofia e fortalecer as instituições haitianas, sobretudo o Estado” – Ricardo Seitenfus”

O Haiti é hoje o paraíso das ONGs, o paraíso da dívida externa. O que precisamos é reverter essa filosofia e fortalecer as instituições haitianas, sobretudo o Estado.

Infelizmente, é uma trajetória muito difícil, intercalada evidentemente por crises políticas que resultam justamente dessa situação de miséria e da história muito peculiar.

A comunidade internacional, através de vários organismos, toma conta das instâncias de segurança e isso resolve a situação aparentemente, na medida em que nós temos uma melhoria das condições internas. Mas continua havendo uma miséria inaceitável em padrões que eu particularmente jamais havia presenciado.

RBA – Como o senhor analisa o papel da Minustah?

Ela colheu frutos naquilo que se propunha, ou seja, na estabilização securitária do país. Reduziu a violência, em especial o número de sequestros, e o Brasil teve participação muito positiva na missão.

“A qualidade da missão de paz foi inversamente proporcional ao seu tempo de operação. Devemos começar a avaliar as possibilidades justamente de ter uma missão de paz com construção, especialmente com a restauração do país” – Ricardo Seitenfus

No entanto, ela demonstra suas limitações. Ou seja, ela estabilizou o país, mas a estabilização se dá em um patamar inaceitável do ponto de vista da segurança alimentar, da miséria, da educação, das questões institucionais, da situação carcerária. Enfim, há uma série de problemas que a Minustah não tem condições de enfrentar, a não ser que mude o modelo.

É necessário refletir para ir em direção a um modelo multifacetado que dê a possibilidade para o Haiti se recuperar no sentido do desenvolvimento sustentado. Além disso, fazendo um balanço dos cinco anos da presença da Minustah, devo dizer que a qualidade da missão de paz foi inversamente proporcional ao seu tempo de operação. Devemos começar a avaliar as possibilidades justamente de ter uma missão de paz com construção, especialmente com a restauração do país.

RBA – Por que essa transição para o início do desenvolvimento é o ponto mais complicado?

É o mais delicado porque deve ser feito agora, na medida em que temos um governo legítimo, resultado de eleições transparentes e participativas. Mas é necessário que a comunidade internacional, que gasta em torno de US$ 700 milhões ao ano aqui no Haiti, pense em um novo modelo de desenvolvimento, onde uma parte desses recursos serão inseridos em atividades para esse fim.

Há projetos específicos, como no caso do Brasil, do Canadá, mas são gotas num oceano de miséria e isso não resolve a situação. A Organização das Nações Unidas (ONU) se deu conta disso e nomeou o ex-presidente (dos Estados Unidos) Bill Clinton como representante do secretário-geral para as questões de desenvolvimento no Haiti. Espero que isso possa resultar em um novo projeto, feito pela comunidade internacional e tocado em parceria com os haitianos para que possamos ter um novo país.

RBA – Qual o fator mais grave em termos de violações de direitos humanos?

Há uma situação dramática dos direitos humanos no Haiti. O relatório independente da Secretaria dos Direitos Humanos da ONU não está à altura do que acontece efetivamente no país.

Um dos direitos humanos fundamentais violados é a incapacidade que a sociedade e o Estado têm em relação à fome. Isso sem falar de outros direitos, como a saúde, a segurança e a educação.

“Há uma situação dramática dos direitos humanos no Haiti. O relatório independente da Secretaria dos Direitos Humanos da ONU não está à altura do que acontece efetivamente no país” – Ricardo Seitenfus

Por outro lado, há situações pontuais, como é o caso do sistema judicial, onde temos 90% dos detentos sem julgamento – no que eles chamam de detenção provisória prolongada, que pode durar meses ou anos. Isso demonstra a falência do sistema judiciário haitiano.

Outro ponto é o sistema carcerário. Por exemplo, existe a recomendação de que haja 2,5 metros quadrados por prisioneiro, mas, no caso do Haiti, há apenas meio metro. Sem falar que muitas prisões não possuem água. É uma situação extremamente grave que deve ser vista com muita atenção e resolvida rapidamente. Há também a situação das crianças. Muitas são escravizadas ou dadas para estrangeiros e também famílias haitianas. Calcula-se que existam 250 mil crianças nessa situação. Somente esse quadro dá uma situação do que é a condição dos direitos humanos no país.

RBA – Há denúncias de violações por parte de missões de estabilização da ONU. O senhor acredita que são reais e, se reais, são amplas ou casos localizados?

Sempre as missões de paz estão sob os holofotes e caminhando no fio da navalha. Aqui, as forças das Nações Unidas têm se comportado de maneira normal, eu até diria que muito melhor que outras missões de paz.

De fato, não existe uma guerra. A gente chama de conflito de baixa intensidade e da luta pelo poder através de meios não aceitáveis, como a violência e o golpe de Estado. Então, não há dois grupos que se enfrentam.

Havia, sim, um sistema perverso, com seqüestros. Isso foi combatido, impedido pelas forças brasileiras na Minustah, mas não há violação sistemática. Pode ter havido problemas pontuais e há um controle extraordinário principalmente nas relações entre os civis e os militares.

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