Problemas econômicos revelam que Venezuela não se livrou de dependência do petróleo

Para analistas, Hugo Chávez não conseguiu cumprir planos de romper com dependência da cotação do barril do minério e da importação de produtos básicos. Com isso, efeitos da crise internacional foram maiores

Chávez reconhece que não conseguirá, com medidas, conter a inflação (Foto: Miguel Angulo/Divulgação Presidência Venezuela)

As medidas econômicas adotadas desde o início do ano pelo governo de Hugo Chávez mostram que a Venezuela não conseguiu se livrar da dependência do petróleo. Analistas ouvidos pela Rede Brasil Atual apontam que decorrem daí diversos problemas que explicam o atual momento venezuelano de blecautes, desabastecimento e inflação.

“Temos de romper com esse modelo e temos tido distintos avanços nisso, mas custa porque é um modelo que nos impuseram há mais de de 100 anos”, afirmou recentemente o presidente. Na realidade, é um pouco menos de 100 anos, porque a primeira descoberta de vulto em Maracaibo ocorreu em 1922. Os problemas venezuelanos atuais desenharam-se a partir das décadas de 30 e 40 do século XX, quando o país descobriu suas abundantes reservas petrolíferas.

Crentes de que o subsolo jamais deixaria de abençoar aquele povo, os sucessivos governos deixaram de lado qualquer plano de desenvolver uma indústria nacional de base, como tentavam fazer Brasil e Argentina naquele período, orientados pela cartilha da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) para a região.

Com essa opção distinta, a Venezuela passou a exportar todos os outros produtos, dos básicos aos manufaturados. Dependente da flutuação do valor do barril do petróleo e de seu próprio câmbio, a sociedade notou como isso mexia com os preços dos produtos. Resulta daí uma inflação que o atual governo não teve sucesso em controlar.

No dia 11 de janeiro, a equipe econômica de Hugo Chávez anunciou a criação de duas taxas de câmbio. Até então, havia uma oficial, praticamente congelada, o que gerava um mercado negro forte, comum em outros países sul-americanos nos piores tempos de inflação. Agora, há uma paridade mais baixa para produtos básicos e outra, elevada, para a indústria em geral.

Rafael Villa, professor da Universidade de São Paulo (USP), avalia que era hora de mexer na taxa de câmbio, já que o valor anterior, com o bolívar sobrevalorizado, prejudicava as exportações e, por consequência, a economia venezuelana. O pesquisador do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) entende que, agora, o governo poderá fazer caixa para investir em seus projetos sociais e haverá mais dinheiro circulando no país.

O que até Hugo Chávez admite é que a inflação não será solucionada com as medidas apresentadas recentemente. “A Venezuela é um país que sempre foi muito americanizado em relação aos hábitos de consumo, então essas mudanças têm um forte efeito”, aponta Luis Fernando Ayerbe, coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Em algum momento (isso) vai gerar uma crise bastante forte”, prevê.

Classe média

Como pontuou Ayerbe, paralelamente às rendas do petróleo floresceu uma classe média acostumada a comprar. E há outra classe média acostumada a vender e a lucrar com a inflação. Quando se sabe que haverá mudança nos preços, os produtos desaparecem da prateleira e reaparecem mais caros depois.

Jack Bocaranda/Agência Bolivariana de Notícias

Valdenésio Aduci Mendes, doutorando da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), analisa a atual situação venezuelana no próprio local dos fatos. Ele conta que um carregamento de açúcar vindo do Brasil no ano passado deveria ter durado meses nos supermercados. Mas sumiu. E voltou a aparecer em vendas menores por um preço várias vezes mais alto.

Ele ressalta que a primeira ocasião em que o Estado venezuelano sentiu fortemente o peso de sua opção foi na década de 1980. Ao contrário do que se pensava, o país não estava imune a crises econômicas internacionais. “Com uma economia fortemente atrelada ao dólar, o Estado venezuelano não tem como evitar que seus gastos públicos deixem de flutuar conforme a maré do ingreso da renda petroleira”, analisa Mendes.

Foi esse o cenário que culminou em uma sexta-feira, 18 de fevereiro de 1983, conhecida como Viernes Negro, data que marca o “fim da festa” em torno da renda fácil provinda da indústria petroleira. O bolivar sofreu uma forte desvalorização frente ao dólar, motivada pela insolvência do Banco Central do país, no governo do então presidente Luis Herrera Campins.

Quase três décadas depois, no entanto, a Venezuela não está livre da maldição de ser um país rico em petróleo e carente de planos alternativos. Houve a criação de uma classe que, encantada com os lucros fáceis, não facilita a mudança de modelo do país. E há problemas de gestão por parte do governo. Os projetos de Chávez eram de se ver livre das rendas petrolíferas rapidamente, mas o desenvolvimento interno imaginado por ele não ocorreu.

Para os venezuelanos, resta uma dúvida: “Por que só agora se resolve pensar que o rentismo petroleiro tem causado mais danos do que benefícios para a população em geral? Esse debate sobre substituição de importações como forma de desenvolver a região latino-americana fez escola na década de 1950 com a Cepal e depois com os téoricos da dependencia”, critica Mendes.

Energia

Além das medidas na área econômica, o governo adotou, a partir da última semana, uma espécie de racionamento entre as indústrias. Cada empresa deverá elaborar um plano para a redução do consumo de energia. É uma forma de evitar que as camadas mais pobres, muitas das quais apenas recentemente tiveram acesso à eletricidade, sejam diretamente afetadas pelos problemas do país.

Apesar de uma considerável fonte hidrelétrica e da abundância de petróleo e gás, faz parte da falta de planejamento venezuelano não se livrar dos problemas de abastecimento no setor. O governo Chávez montou um cronograma que prevê, até 2012, a erradicação das questões de abastecimento. A primeira fase, no entanto, esbarrou nos interesses de donos de supermercados. A substituição de lâmpadas incandescentes por econômicas ficou dificultada pelos comerciantes que retêm os produtos para uma venda a preços exorbitantes.

Luis Fernando Ayerbe, da Unesp, lembra que os problemas deste ano, gerando blecautes frequentes na capital Caracas e recomendações à população para que economize, têm uma outra explicação além da má gestão do setor energético. O fenômeno El Niño provoca secas fortíssimas no país – calcula-se que, se não chover bastante nos próximos dois meses, mais cortes precisariam ser feitos.

O resultado é que a insatisfação cresce entre a população e chegou-se a falar de um novo Caracazo, repetindo o movimento de 1989, quando o povo foi à rua. Ainda que não existam pesquisas indicando se Chávez se desgastou com o tema, o fato é que o presidente segue bastante popular e poucos analistas apostariam que os setores mais pobres da população se revoltem contra o atual governo.

Eleições

Um importante índice será mostrado pelas eleições legislativas de setembro deste ano. Chávez precisará lutar para manter o controle da Câmara e continuar com fácil aprovação de seus projetos. Entende-se que, de toda maneira, as medidas atuais vão aumentar a polarização no país. Heinz Dieterich, um dos analistas mais respeitados por Chávez, culpou a incompetência da equipe econômica e afirmou que as últimas decisões vão jogar os indecisos para o lado da oposição.

Enquanto Chávez sempre defendeu mais e mais intervenção do Estado na economia – com ganhos de popularidade pelos efeitos da medida –, a oposição tradicionalmente defende medidas liberalizantes. O contexto de crise econômica mundial fez aumentar as ações de Estados na economia, inclusive de nações ricas. “Na Venezuela, em que isso já ocorria, Chávez teve argumentos para aprofundar suas políticas nesse sentido”, afirma Ayerbe.

Uma delas é a nacionalização da rede Éxito de supermercados, empresa do grupo francês Casino – que tem participação no brasileiro Pão de Açúcar. O governo apontou que o conglomerado vinha agindo de maneira desleal em relação aos preços e anunciou que a gestão passará aos funcionários. Na mesma semana, houve intervenção em bancos, com processos judiciais abertos contra banqueiros acusados de crimes financeiros.

Valdenésio Aduci Mendes não tem dúvidas de que a corrupção é um fator que continua assolando o país e, somada à falta de controle da verba pública por parte do Poder Executivo, dificulta qualquer política de substituição de importações. O doutorando da UFSC aponta que não se pode prever como a oposição vai se aproveitar do atual momento. Mas ele relata que, entre as forças chavistas, o clima já é de campanha eleitoral e das palavras de ordem: “Pátria, Socialismo ou morte”.