Para advogado, é perigosa a reabertura de debate sobre direitos autorais só para especialistas

Questão foi discutida pela sociedade nos últimos anos e deu origem a anteprojeto de lei encaminhado à Casa Civil. Ministra Ana de Hollanda mostra-se disposta a restringir mudanças na legislação em vigor

São Paulo – A atualização da Lei de Direitos Autorais volta a ser discutida por ativistas e pelo Ministério da Cultura. A decisão de reabrir o debate apenas para especialistas e técnicos de entidades ligadas ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) é criticada por Paulo Rená da Silva Santarém, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e ciberativista.

Um anteprojeto de lei chegou a ser entregue pelo Ministério à Casa Civil da Presidência (clique aqui para ler). Ele foi formulado pelo Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi) a partir das propostas de uma consulta pública desenvolvida em 2010. Na versão fechada pelo governo, há menos avanços na questão do que sugeriram os ativistas ligados que defendem mais abertura e flexibilidade para lidar com cópias não comerciais e criação de obras derivadas (como remixes de músicas).

Ana Buarque de Holanda, atual ministra da Cultura, anunciou a decisão de rediscutir as alterações. Os novos ajustes não contaram com a participação da sociedade, mas com advogados especializados. Dessa forma, a tendência seria restringir ainda mais as transformações na lei, que data de 1998.

À Rede Brasil Atual, Rená faz críticas à conduta do Ministério da Cultura. Gestor da discussão do Marco Civil da Internet no Brasil no Ministério da Justiça, ele defende que todas as pessoas têm o direito à liberdade de expressão, garantido pela Constituição. Isso inclui “o direito de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”.

Confira os principais trechos da entrevista.

RDB – Como o sr. vê a a transição no Ministério da Cultura, com a entrada de Ana de Hollanda, em relação à atualização das normas sobre direitos autorais?
Paulo Rená da Silva Santarém – A Ana foi clara no sentido de que ela não tinha a intenção de dar continuidade ao processo no ponto em que (o ex-ministro) Juca Ferreira parou, que já era o de uma proposta de anteprojeto de lei encaminhada à Casa Civil. Ana afirmou que iria submeter o texto a advogado especialistas.

RDB – Qual o problema de se rediscutir o projeto?
Há uma contradição muito perigosa. O processo anterior era de interação com a sociedade, de abertura para novas visões, de reconhecimento, por exemplo, da internet como um novo espaço público adequado para discutir políticas culturas. Esse recurso a especialistas é um retrocesso já como forma de agir. É menos democrático, exclui mais do que inclui, desde a sua concepção.

RDB – Como é a questão jurídica sobre direitos autorais em outros países?
De maneira geral, a legislação em todo o mundo ocidental é problemática. Ela não acompanha a cultura já há algumas décadas. O direito autoral – e isso é muito bem apontado por Lawrence Lessig (teórico norte-americano que estuda o tema) – tem servido para barrar a criatividade, como forma de preservar um modelo de negócios extremamente lucrativo para poucos e prejudicial para muitos.

RDB – E que ações práticas esses países fazem para cumprir essas normas sobre direitos autorais?
Nos Estados Unidos, estão desenvolvendo livros cujo papel reflete mais luz e impede que a página seja fotocopiada por uma xerox. E os livros digitais vêm com travas que impedem a livre circulação em mais de um dispositivo, como um celular, um leitor (como tablets) e um computador, ainda que de um mesmo consumidor.
 
RDB – Em relação a livros, qual o problema que hoje afeta o Brasil por causa das normas de direito autoral?
No Brasil, a indisponibilidade de títulos acadêmicos é grande. E mesmo assim, violar direito autoral é crime enquadrado no artigo 184 do Código Penal. Com ou sem intuito de lucro. Se houver o objetivo de lucrar, aumenta a pena. Pela Lei de Direito Autoral, reproduzir e publicar ou tornar público um livro depende da permissão do titular, ou se configura uma violação.

RDB – Pensando no mercado fonográfico, como se aplica a legislação atual e o que a sociedade perde com essas normas na sua opinião?
A questão da música se liga à concentração dos lucros, alguns artistas ganhando muito e muitos ganhando pouco ou quase nada. E essa lógica se sustenta na legislação que restringe a livre circulação da cultura. A restrição vem exatamente pelos limites poucos claros da lei. Nesses limites, propositalmente confusos, o Ecad, por exemplo, cobra em todas as possibilidades que a ele se mostrem possíveis. Como tem estrutura jurídica, coloca-se em posição beneficada contra, por exemplo, cada casal de noivos que se vê ameaçado em sua cerimônia caso não paguem a taxa cobrada. De outro lado, artistas pequenos que tocam músicas próprias pagam as taxas pela execução dos shows, mas não vêem a cor do dinheiro, porque o Ecad trabalha com amostragem. E essa é a esmagadora maioria dos artistas e bandas no Brasil.
O Ecad cobra de qualquer artistas, mesmo se ele tiver aberto mão de seus direitos. Mesmo se ele só tocar suas próprias canções. O criador – esse é o termo mais amplo – é o titular do direito autoral, mas há direitos conexos. São direitos de quem participa de alguma forma da criação ou execução da obra intelectual. Por exemplo, o musicista que tocou triângulo não é “criador”, mas tem direito ligado, conexo ao direito autoral.

RDB – A proposta discutida em 2010 era suficiente?
A primeira proposta do MinC, apresentada ano passado e submetida ao debate pela Internet, era interessante em muitos aspectos. Menos inovadora do que poderia, mas infinitamente mais adequada do que a lei atualmente vigente. Eram passos modestos, mas na direção correta. Se fossem aprovados, no geral, teríamos um ambiente legal melhor. Já última versão ficou como um documento interno do governo, até para evitar contradições internas e eventual “fogo amigo”.

RDB – O sr. pode citar exemplos práticos de mudanças?
A sujeição do Ecad a um controle social por meio da transparência pública de seu funcionamento é uma delas. O artigo 46 ganhou novas hipóteses de usos que não violam direito autoral. Por exemplo, a possibilidade de copiar de um disco para iPod ou para computador, sem limites dentro dessa finalidade, hoje é crime. No uso para deficientes também havia avanços. Por exemplo, gravar um livro em áudio para cegos é crime atualmente. Mesmo se for em braile, sem a autorização prévia.

RDB – Em relação a internet, sites com links para download de livros, músicas e séries de TV, como se aplica a lei?
Em geral, os sites são ilegais. Portanto, criminosos. Isso é um absurdo, na minha opinião, mas é a realidade jurídica atual.

RDB – Como deveria ser, em sua avaliação?
Defendo que o compartilhamento é uma prática difundida e aceita pela sociedade como um comportamento lícito. A prática pode ser protegida pela Constituição se vista a partir de uma leitura inclinada à garantia do acesso à cultura. Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão. Esse direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.