Educação latino-americana ainda sofre impactos das leis de mercado, diz pesquisador

Economista aponta que discurso de eficiência e de competição de mercado levou a cortes no orçamento público e a aumentos nos gastos familiares com ensino que não foram revertidos

Ilich Leon Ortiz, economista e consultor da Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação (Clade), considera que os investimentos sociais ainda representam um obstáculo para governos da América Latina. Mesmo com a superação do neoliberalismo, os países continuam atrelados a uma agenda que pressupõe dedicar um percentual maior do Produto Interno Bruto (PIB) ao pagamento da dívida que à educação.

Em entrevista à Rede Brasil Atual, o colombiano aponta que o Brasil fez esforços, mas precisa avançar muito no que diz respeito a investimentos educacionais, e destaca que a Argentina está voltando a uma forte discussão sobre a necessidade de incrementar os recursos destinados ao ensino.

RBA – De que maneiras o ideário neoliberal provocou danos à educação latino-americana?

Nossa visão vai na contramão do capital humano. Pensam que a educação é um investimento econômico com rendimentos sobre os indivíduos. É a educação como serviço privado e, como tal, o financiamento é exclusivamente privado. Apenas no caso de existência de determinados aspectos sociais haveria financiamento público, mas compartilhado com o privado. Esse foi o discurso que teve uma influência generalizada na América Latina.

Por exemplo, temos casos extremos de transformação do orçamento público – que antes ia às escolas – que passou a ser dirigido através de subsídios ligados à demanda, à quantidade de pessoas vinculadas ao sistema. Muitas vezes nem sequer tendo em conta se esses recursos vão para colégios públicos ou privados.

É o panorama de países como Chile e Colômbia, onde essa privatização se levou a cabo de maneira mais extrema. E há outros onde a mercantilização ocorreu com menos força, em especial na educação secundária e no ensino superior, como Brasil, Argentina e Equador. Temos um discurso estruturante da competição, da mercantilização, da eficiência do mercado sobre a educação que teve muito diversas aplicações.

O resultado, claramente, é uma atenuação da importância do orçamento público no financiamento da educação, um acréscimo nos gastos familiares para ter acesso à educação, uma acentuação das desigualdades educacionais. Temos um panorama no qual o Estado não está garantindo o financiamento.

RBA – Já que o senhor falou de desigualdades, de que modo este modelo contribui às desigualdades sociais?

De diversas maneiras. Um sistema educativo no qual o financiamento se faça através de mensalidades escolares ou dos custos associados à educação, como livros e materiais, implica diretamente que as famílias com maior capacidade financeira terão mais possibilidades que as famílias de menores salários.

Por outro lado, justamente as camadas mais baixas têm maior incidência de pessoas ou famílias que são objeto de tradicionais exclusões ou discriminações na sociedade, como as étnicas, e portanto são aquelas que terão menor possibilidade de entrar na escola, de continuar nela e de sair com êxito da mesma. À medida em que os gastos relacionados à educação são despejados sobre as famílias, está-se acrescentando fatores às desigualdades.

RBA – Há algum país em nossa região que esteja tratando de fazer o caminho inverso?

Interessante é mostrar que existe uma série de problemáticas que vão mais além do orçamento público educativo. É algo que vai, por exemplo, aos ministérios da ala financeira, que determinam os percentuais que se dirigem a cada finalidade. É um problema de destinação geral das prioridades públicas, e não somente dos setores educacionais.

Há várias discussões importantes como, por exemplo, as barreiras que impõe o Estado de maneira ativa. Por exemplo, quando despeja carga tributária sobre os mais pobres. Isso significa um impacto sobre as condições de igualdade da sociedade e, por fim, da educabilidade da sociedade.

Frente a este panorama, que é de toda a América Latina, com processos de privatização da educação, tivemos retrocesso extremamente profundos a respeito. São espaços nos quais a mobilização pública não se deu, bem como não ocorreu um movimento de direitos econômicos e sociais.

No caso da América Latina, durante os últimos oito anos tivemos uma onda de governos mais ou menos progressistas que fizeram um esforço para aumentar, mais ou menos, o gasto público em educação, mas não puderam transformar as condições estruturais de financiamento, de definição de marcos macroeconômicos, de políticas de dívida pública, e neste sentido sua capacidade para transformar em profundidade as condições de acesso aos direitos está sumamente limitada. É o drama que vivem os governos progressistas. Apesar de esforços importantes, não chegam a mudar a situação.

RBA – A Argentina, até pouco mais da metade do século passado, tinha uma situação educacional distinta da vista na região. Por outro lado, foi o país que sofreu mais a fundo com as políticas neoliberais. Qual a situação atual?

Digamos que sobretudo no que diz respeito ao financiamento há um debate importantíssimo. Existe a consciência na sociedade argentina de que houve um retrocesso na qualidade da educação, nos resultados cognitivos, e em torno das condições nas quais se desenvolve o processo educativo, como os salários dos professores, a sobrevivência das instituições. E havia na Argentina a gratuidade até o ensino superior, e hoje, ainda que siga existindo, é muito notável que está completamente sem financiamento o setor.

O que ocorre é que se está ativando um debate fortíssimo sobre as consequências que teve a introdução neoliberal. Esse debate, muito seguramente, conduziu a que aumentem as pressões para incrementar o investimento público em educação, mas a situação é lenta. Recuperar o caminho perdido é lento. A Argentina passou de um dos países mais pujantes na América Latina a um dos mais afetados em termos de qualidade de seu Produto Interno Bruto (PIB). Ainda estão vivendo as consequências da desestruturação que implicou uma aplicação tão profunda do modelo neoliberal.

RBA – E o caso brasileiro?

Efetivamente houve aumentos no gasto público em educação a nível federal, mas está claro que não conseguiram dissolver as fortes desigualdades entre os estados. Um grande desafio é como fortalecer o investimento de educação a nível interestadual. Fazendo mais transferências federais, tratando de colocar em mais condições de igualdade os estados.

Mas isso está muito limitado, apesar do crescimento econômico do Brasil nos últimos anos, principalmente por conta dos marcos financeiros e da dívida pública, que implicam que o país gere excedentes financeiros que limitam muito a capacidade de gastos em educação.

Está muito claro que houve uma vontade política, que existe uma situação econômica muito mais favorável, mas é preciso gerar condições para esses investimentos. É preciso que, no que diz respeito à situação macroeconômica, leve-se mais em conta os direitos sociais.

RBA – Como explicar o quadro educacional cubano?

Isso é notável. Quando se comparam todas as estatísticas da América Latina, Cuba ressalta-se por estar praticamente fora de contexto. Está muito além da medida de gastos públicos, estamos falando de 12% do PIB em educação, contra uma média regional de 5%. E isso se reflete nos resultados acadêmicos, cognitivos, nos quais Cuba sempre mantém a liderança.

É um esforço de um país que sofre fortes dificuldades econômicas. Não somente por questões de desenvolvimento, mas principalmente pelo bloqueio (imposto pelos Estados Unidos). Digamos que é um caso extremamente especial para a região, mas muito difícil de replicar por se dar em um conjunto político e econômico muito específico.

De todo modo, o caso de Cuba mostra que há um compromisso político e social com os direitos econômicos e sociais, notavelmente em saúde e em educação, que são resultado de um investimento constante. Isso nos permite sair da discussão da eficiência para falar de compromisso com os direitos. É o ensinamento cubano: se há um gasto sustentado a largo prazo, não importa se o país é pobre, vai melhorar a condição da maioria das pessoas, gerando maior igualdade.

Leia também

Últimas notícias