Pressão tenta quebrar resistência da USP a aceitar política de cotas

Movimentos sociais cobram adoção de medidas inclusivas de negros e indígenas para a USP, Unesp e Unicamp

Movimentos avaliam que o bônus dado pela USP a estudantes de escolas públicas é insuficiente (Foto: USP. Divulgação)

São Paulo – Relutante à adoção de políticas de cotas em seu processo seletivo, a Universidade de São Paulo (USP) vai aos poucos sendo empurrada ao caminho tomado há dez anos por instituições de ensino superior do Rio de Janeiro e logo espalhado por todo o país. O debate estadual esquenta na esteira de decisões do Judiciário, de medidas estudadas pelo governo federal e de pressões do Legislativo paulista.

Para o advogado Silvio Luiz de Almeida, doutor em direito pela USP e presidente do Instituto Luiz Gama, o programa de bônus adotado pelas universidades estaduais paulistas tem efeito ínfimo frente às desigualdades históricas entre negros e brancos. “Os negros e os indígenas do estado de São Paulo não aceitarão mais migalhas enquanto esperam pacientemente a boa vontade dos luminares da política bandeirante”, afirma Almeida.

Ele compõe o movimento Frente Pró-Cotas, responsável por uma articulação para tentar reverter a postura da universidade. “Com uma reserva de vagas de 20%, por exemplo, mesmo que ainda não o seja suficiente, negros e indígenas efetivamente estariam na universidade, com chances reais de mudarem suas vidas, as vidas de suas famílias, a sociedade, sem ter que aguardar mais 120 anos por uma reforma no sistema educacional básico que até agora não se anunciou.”

Em 31 de maio, a Congregação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco aprovou, com maioria de votos, a indicação de que se adotem cotas raciais. A indicação foi encaminhada ao Conselho Universitário, órgão deliberativo máximo da USP. Segundo o professor titular Marcus Gonçalves Orione, propositor da medida, a posição atual muda as característica da academia. “A faculdade, além de tradicional, era tida como conservadora. Com uma resposta favorável às cotas raciais, e também às sociais e para pessoas com deficiência, percebe-se o desejo desta comunidade de retomar a sua liderança na luta por ideais democráticos de inclusão social e de liberdade voltando, aliás, ao curso de sua história.” 

Em 20 de junho, a Frente Pró-Cotas conseguiu incluir na pauta do colegiado o debate, que precisa ser realizado em 90 dias. A conquista ocorreu após manifestação de aproximadamente 100 estudantes e apoiadores do movimento, na sede do Conselho, no campus Butantã, zona oeste da capital. Para a União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Negras (Uneafro), o debate pode se revelar um marco histórico. Segundo a organização, o avanço se deve ao fato de a USP ser alvo, há anos, de protestos e ocupações de grupos em defesa de pautas como a criação de cotas para negros e a classe trabalhadora.

De acordo com o estudante de Direito da USP Danilo Cruz, que se autodeclara negro, a atuação da faculdade é relevante porque a “USP é umas das universidades mais elitistas e antidemocráticas do país. Nada do que é feito é discutido com a comunidade acadêmica”. Atualmente, a instituição oferece um sistema de bonificação restrito a alunos que cursaram o ensino médio na rede pública, sem recorte étnico. “Geralmente quem se vê no curso de Direito e se apresenta como estudante oriundo de escola pública, estudou nos colégios de ponta, como as escolas técnicas, federais ou militares, onde para ingressar precisa passar por um vestibulinho e geralmente se tem maior renda que as demais escolas públicas”, diz. 

O tema não é novo no estado, já foi discutido e engavetado anteriormente, mas as ações favoráveis às cotas tiveram novo ânimo nos últimos meses, a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em abril, pela constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades, negando a ação contrária a esta política, protocolada pelo Democratas em 2006.

Para o estudante Leandro Salvático, do Núcleo de Consciência Negra, na USP, entidade que compõe a Frente Pró-Cotas, é preciso que a universidade se ajuste a partir da decisão do STF. “A USP tem sido omissa, mas não tem mais escolha, porque o debate está sendo feito junto à sociedade.”

Segundo dados do Censo de Educação Superior 2010, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2009, os jovens negros possuíam 1,5 anos a menos de escolaridade, em comparação aos jovens brancos com 10,2 anos de estudo. Atualmente, de 1.643.671 matrículas nas universidades públicas do país, contabilizadas pelo órgão, os negros representam 4% desse total e os indígenas apenas 0,2%.  

Em São Paulo, a USP, a Unesp e a Unicamp não possuem dados sobre o perfil étnico-racial de seus alunos. Mas o Anuário Estatístico 2012 da USP mostra que, do total de 10.929 alunos matriculados na graduação a partir deste ano, 79% da população é branca. Ao mesmo tempo, os indígenas representam 0,2% e os pretos e pardos, juntos, 12% do quadro de ingressantes.

    Infográfico

Projetos de Lei

Nos últimos dez anos, foram apresentados pelo menos oito propostas para a criação de cotas raciais no ensino superior na Assembleia Legislativa. O Projeto de Lei (PL) 321, de 2012, do deputado Luiz Claudio Marcolino (PT), feito em parceria com o Instituto Luiz Gama, é o mais recente e tramita na Casa desde maio. Estabelece cotas nas faculdades e universidades púbicas estaduais para negros, indígenas e portadores de deficiência. Lideranças do movimento trabalham para que a proposta seja votada antes do recesso parlamentar.

Os movimentos apoiam a anexação a este último projeto do PL 530, de 2004. Segundo Almeida, o primeiro, assinado por diversos deputados, pertencentes a diferentes partidos, foi e continua sendo um texto muito interessante. “A diferença fundamental entre os dois projetos é que este último incorpora o estágio atual do debate jurídico-político sobre as ações afirmativas, reafirmado pela recente decisão do STF”, disse. 

Para a defensora pública estadual Maíra Coraci Diniz, também coordenadora do Núcleo de Combate à Discriminação, ao Racismo e ao Preconceito, apesar de considerar importante o projeto, entende não ser necessária a aprovação de qualquer lei que autorize o estado a implementar as cotas. “Já temos uma legislação que embasa uma política nesse sentido, como o que está disposto na Constituição e no Estatuto da Igualdade Racial.”  

Em seu artigo 1º, o projeto mais recente afirma que foi criado “com a finalidade de promover a igualdade substancial, a diversidade étnico-racial e a democratização do acesso ao ensino superior”.  Ele propõe que as instituições estaduais de ensino superior tenham 20% de suas vagas reservadas para afrodescendentes e indígenas, outros 20% destinados a estudantes da rede pública de ensino e 5% para pessoas com deficiência.

Para o coordenador do Coletivo de Combate ao Racismo, Júlio César Silva Santos, do Sindicato dos Bancários de São Paulo, apesar de o projeto ser um paliativo, visto que para haver uma mudança concreta seriam necessárias mudanças na política do ensino de base, “ele representa a inclusão das camadas mais desfavorecidas de São Paulo, proporcionando abertura para a sociedade de consumo e auxiliando na diminuição das desigualdades”.  

O PL 321, de 2012 passará por comissões da Assembleia e receberá a avaliação da Coordenadoria de Políticas Públicas para a População Negra e Indígena de São Paulo, órgão que já informou que fornecerá parecer pela rejeição. Antônio Carlos Arruda, responsável pela coordenadoria, embora se assuma como defensor das políticas afirmativas, não é a favor das cotas, nas quais vê um viés político-partidário. Ele assume a defesa da implementação permanente de uma política de pontuação. Por exemplo, na nota de alguém que se autodeclarasse negro ou indígena, haveria 3% de acréscimo em cima do valor que o aluno tirasse na prova. O coordenador diz ainda que as cotas nas universidades e no serviço público “funcionam, mas limitam”.

Para Almeida, do Instituto Luiz Gama, essa avaliação é equivocada. “Esse tipo de postura da Coordenadoria, que deveria ser o canal de diálogo demonstra que há um abismo separando as políticas do governo paulista, do que querem e necessitam as populações negras e indígenas no estado”, opinou. 

O professor Emerson Oliveira, indígena Guarani Nhandeva, formado em ciências sociais pelo programa Pindorama de cotas da PUC-SP, entende que é necessário que o projeto de Marcolino seja aprovado urgentemente. “Assim, uma vez que alunos como eu terminem o ensino médio, possam ver uma luz no fim do túnel. Digo isso ao perceber o quanto as políticas liberais continuam praticando o racismo no século 21 para certos grupos, principalmente a nós indígenas e aos nossos irmãos negros”, afirmou. 

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