Política urbana em São Paulo sairá de debates e confrontos, diz urbanista

Autoridade no tema, Erminia Maricato afirma que a sociedade precisa se organizar para pensar em como ocupar o espaço urbano e equilibrar as políticas sociais com o ímpeto do mercado

Sem-teto ocupam terreno na região central da capital paulista e refletem os muitos déficits sociais deixados pelo mau planejamento urbano (©DaniloRamos)

São Paulo – A urbanista e professora da Universidade de São Paulo Erminia Maricato afirma que as forças que movem a especulação imobiliária põem em risco a promessa de renovação na maneira de se pensar a ocupação dos espaços na capital paulista, em contraponto com o que acena o prefeito Fernando Haddad. “O centro de São Paulo vive uma queda de braço há muito tempo. Há 30 anos ouvimos falar em moradia popular naquela região”, disse à Rede Brasil Atual, ao relatar que o mercado ignora a necessidade de moradia para famílias de menor renda.

Ela lembrou também que o sucesso de uma política urbana construída a partir do diálogo com a sociedade precisa levar em consideração também um fator que foge ao controle do prefeito: o crescente número de automóveis que “entopem” as ruas e que leva ao confronto entre o transporte público e o privado, ambos vorazes consumidores de recursos.

Ermínia Maricato foi secretária de Habitação de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1993) e secretária executiva do Ministério das Cidades do governo Lula.

Ao comentar o chamamento ao diálogo feito por Haddad na última semana, Ermínia afirmou que o encontro foi importante e que espera que a sociedade aproveite o momento para organizar o debate sobre a cidade que espera ter no futuro. “O prefeito não pode tudo” Acompanhe os principais trechos da entrevista.

A senhora já disse algumas vezes que se deveria parar de discutir o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo e começar a pensar a política de urbanização da cidade de outras formas. A prefeitura iniciou há alguns dias as discussões para a construção de um novo PDE. Que importância terá essa discussão?

O Millôr (Fernandes, escritor e jornalista) soltou uma frase uma vez que era assim: os sábios discutem as incertezas, os ignorantes atacam de surpresa. O Plano Diretor é uma peça para os “sábios” discutirem. Ele é um fetiche na nossa sociedade, é um mito até para a mídia. Já temos vários textos sobre “a ilusão” do Plano Diretor. Porque se ele fosse colocado em prática, nenhuma cidade brasileira teria os problemas que tem, principalmente essa falta de controle sobre ocupação do solo.

O Plano Diretor propõe coisas como harmonia, alegria e tudo o mais. Porém, você tem um investimento do Orçamento Público que vai para o outro lado. Todo Plano Diretor fala que a prioridade é transporte público, mas aí se investe muita mais em pavimentação, em pontes, viadutos e túneis, tudo para o automóvel andar. Você está indo contra o Plano Diretor.

Muita gente acha que política urbana é obra – e não é. Política urbana é principalmente a orientação do uso e da ocupação do solo. Onde você vai manter a beira dos riachos e rios, onde você vai adensar moradia, onde vai ter metrô e trem. Mas no Brasil é obra. Porque está ligada com essa coisa de financiamento de campanha. Eu só tenho medo que esse Plano Diretor adquira essa característica do fetiche. A gente fica distraída e não percebe para onde realmente o investimento tá indo.

O urbanista João Sette também falou sobre a compra de terrenos na margem do Tietê por grandes empresas em um texto recente. A senhora já ouviu algo a respeito disso?

Sabemos que há muito capital privado comprando terreno na cidade em determinadas regiões. Nós temos um grupo de pesquisa no laboratório de habitação da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) bem grande. E temos estudantes que estão monitorando o mercado imobiliário, as características dos terrenos que estão sendo adquiridos, tipologia, preços, quais são as empresas, os canteiros de obras. Estamos estudando o centro da cidade há muito tempo.

Seria fundamental que a universidade colocasse tudo isso a serviço da população, para diminuir o “analfabetismo” urbanístico. Mas tem uma parte da  academia que fala coisas que não interessam à população e tem outra que fala de um jeito que a população não entende. Mas a gente já tem um ‘approach’ com movimentos sociais. Já temos um pouco este traquejo, de estar ligado à informação acadêmica e também a pessoas que são líderes de bairros, de movimentos interessantes.

A prefeitura de São Paulo e governo do estado anunciaram uma parceria para construção e reforma de 20 mil moradias no centro de São Paulo na semana passada. Como avalia essa iniciativa? 

Eu, na verdade, estou na torcida. Estamos num país onde a segregação é tão forte… o centro de São Paulo é uma área que está numa “queda de braço” há muito tempo. Há 30 anos você tem projetos que falam em trazer moradia social para a região. Como o capital imobiliário não sabe trabalhar com a moradia social – para famílias com renda abaixo de seis salários mínimos – não existe interesse.

Então há um conflito no centro de São Paulo. Tem muitos mestrados, doutorados, livros que mostram estes conflitos nos últimos trinta anos. Quando o prefeito fala “nós vamos construir 20 mil unidades, ele está apostando em um espaço que seria um dos poucos nesse país em que teríamos uma democracia. E seria a melhor de trazer segurança para aquele lugar, para qualquer lugar.

É o contrário do que uma classe média ou uma elite conservadora pensa. A hora que você tem uma mistura, que você tem chance de andar de dia e de noite, porque de noite tem gente que mora lá, não é só um lugar de trabalhar. Tem uma mulher, chamada Jane Jacobs que escreveu um livro chamado A Morte e Vida das Grandes Cidades em que ela fala exatamente isso: o centro morre à noite e os subúrbios – ela está se referindo aos subúrbios americanos – morrem de dia.

Para o centro não morrer à noite, temos que ter moradia no centro. Ter o centro vivo é o que traz a segurança. Ela até fala “nos olhos da rua”. Os olhos da rua são os comerciantes, que estão abertos durante o dia, e de noite, a população. O livro é de 1961. Veja, há tanto tempo ela está falando isso, e a gente continua segregando.

Erminia Maricato, urbanista (©e-Arquiteto)Na última quinta-feira (27) a senhora e outros urbanistas importantes estiveram com o prefeito Fernando Haddad. Como foi a conversa? 

Ele expôs o que tem sido feito, a suspensão do projeto Nova Luz, falou sobre o Arco do Futuro e as providências já tomadas para aumentar o número de corredores de ônibus. Falou também sobre a área de desenvolvimento urbano como um todo. A questão da inclusão social, da moradia social na área mais central da cidade … Ele queria ouvir um pouco o que a gente acha disso, foi uma conversa informal mesmo, interessante, descontraída.

O prefeito está bem intencionado, mas o quadro não é muito rosa, não. Por exemplo, esse “entupimento” de automóveis na cidade. Essa é uma coisa que não é o prefeito que define, quantos automóveis vão andar na cidade. Ele tem o poder de tornar o transporte público mais importante. Mas mesmo assim é uma disputa pelo transporte privado. Apostamos em um modelo tão irracional que é este de todos ficarem dentro de um automóvel e causar todos os males que o automóvel causa; de poluição, doenças, aquecimento global, depressão … porque aceitamos este modelo?

O prefeito não pode tudo. É isso que seria muito importante a sociedade discutir. Ninguém diz no Brasil que o automóvel é prioridade na mobilidade, você não acha isso escrito em nenhum lugar. Pelo contrário, você vai na legislação, na lei de mobilidade que foi aprovada este ano, e está lá que o transporte público é a prioridade. E não sai do papel. Agora, se a sociedade fosse mais esclarecida sobre quais são as forças que estão em jogo, e que às vezes precisamos criticar o prefeito, mas outras vezes, precisamos apoiar. Ou chegar no prefeito e falar: o que nós queremos é isso.

E como avaliar o que a prefeitura vem fazendo em termos de políticas urbanas?

Nós estamos sob uma intensa dominação das cidades brasileiras por parte de forças cuja principal preocupação não é o interesse público, pelo contrário. As grandes empreiteiras de infraestrutura estão entrando no mercado imobiliário – e há uma grande especulação imobiliária no país. Estamos diante de uma crise configurada para o interesse público. A maior parte das pessoas não tem condição de entrar no mercado imobiliário, nem com a ajuda de programas como o “Minha Casa, Minha Vida.”

Acho que esta situação precisa ser esclarecida para a população, a sociedade tem de se informar. Porque eu não vejo como o Executivo pode resistir a isso. A gente sabe o poder que o capital das grandes empreiteiras, o capital imobiliário – para não falar do setor automotivo – têm sobre as câmaras municipais. Como se vai controlar, regular isso? É muito difícil.

Agora, eu acho que a prefeitura tem de fazer o que a correlação de forças permite a ela fazer. Se tem a intenção de tornar a sociedade mais democrática, em primeiro lugar vem o transporte público. E parece que realmente ele (o prefeito Haddad) tomou iniciativas importantes; em segundo lugar é preciso democratizar o centro de São Paulo e suspender aquela coisa absurda e vergonhosa que era entregar patrimônio público quase de graça na mão das empreiteiras, como era na Nova Luz (projeto de intervenção urbana capitaneado pelo ex-prefeito Gilberto Kassab).

E o Arco do Futuro?

Eu acho que muita gente considera importante reabilitar certas áreas de São Paulo, mas do meu ponto de vista – e foi isso que eu conversei na reunião – existe uma dívida com a periferia. Os bairros das periferias precisam se transformar em bairros urbanos. Precisam ter qualidade, oferta de serviços, oferta de infraestrutura, o que existe em certos bairros bons da cidade. Não digo que precisa ser igual a Higienópolis, mas é óbvio que você precisa retomar a proposta do CEU (Centros de Educação Unificados), por exemplo. Com o CEU você leva para o bairro pobre um serviço moderno, civilizatório. Uma qualidade de esporte, de lazer e de ensino que é um antídoto contra a violência. A minha posição é essa. Não sou defensora irrestrita do Arco do Futuro.

Dá para dizer que estas medidas iniciais são importantes, mas são “centrocêntricas”? 

A ideia é trazer para o centro parte da periferia. O pessoal que está defendendo o Arco do Futuro está pensando nisso. Você tornar estes espaços centrais mais democráticos. Porque é a região com melhores condições de mobilidade. Se isso fosse claramente possível eu apoiaria, mas eu temo que não seja. Porque o que tenho visto é que a sociedade brasileira tem um viés muito cruel de concentração de riqueza. Por exemplo: essa história de que pobre nas proximidades, abaixa o preço do metro quadrado. Porque ninguém quer pobre perto de casa. Se conseguir fazer um mix, eu acho ótimo. O secretário de Desenvolvimento Urbano (Fernando Mello) me explicou que eles estão fazendo também um levantamento dos recursos existentes na periferia. Estão com grupos intersetoriais em cada regional. O que é uma “super” novidade. Ter diversas secretarias no mesmo lugar para discutir a mesma coisa. Não adianta achar que desenvolvimento urbano vai se resolver sem a participação direta da área da Saúde, e principalmente sem a área de transporte. https://mail.google.com/mail/u/0/images/cleardot.gif