Só luta garante a moradores direitos em favela urbanizada na zona leste de SP

Prefeitura avança na construção de conjuntos habitacionais no J. São Francisco após despejar população, pagando pouco. Proposta inclui auxílio-aluguel e vagas em programas de moradia

Ninguém é contra a urbanização, “mas pra algumas famílias foi muito doloroso”, diz Elisabete Silvério. “Houve despejos e violência” (Foto: Danilo Ramos/RBA)

São Paulo – Parece um pouco Sarajevo, cidade destruída nos anos 1990 pela guerra nos Bálcãs: a diferença é que os escombros do Jardim São Francisco, na zona leste de São Paulo, não são resultado de bombardeios. Foram tratores que passaram derrubando barracos sem distinguir madeira, alvenaria ou tempo de ocupação. O cenário de guerra contrasta com as obras que avançam logo ao lado, um imenso descampado poeirento pontilhado por máquinas e operários.

O Jardim São Francisco era uma grande favela até o ano passado, mas agora está sendo urbanizado pela prefeitura. Em alguns pontos do bairro já é possível divisar pequenos prédios alaranjados, que se destacam em meio ao cinza rasteiro das moradias mais antigas – cuja situação fundiária está sendo regularizada. Música alta sai de algumas janelas, roupas secam nas sacadas. Outros edifícios estão recebendo os últimos retoques antes de serem abertos para seus primeiros moradores.

Muitos eram dali mesmo, e até então viviam em barracos: os gatos de energia que continuam emaranhados nos postes são resquícios de um passado que não deverá mais voltar. Enquanto as chaves não são distribuídas, o governo municipal oferece mensalmente um auxílio financeiro para que as famílias possam arcar com o aluguel em outra parte da cidade. É um teto provisório até terem a casa própria, cujas prestações serão suavemente quitadas ao longo da vida. Mas garantir esse direito não foi fácil.

“Temos que reconhecer que há um potente investimento nas favelas de São Paulo, principalmente nas grandes aglomerações, como Heliópolis e Paraisópolis”, admite Benedito Roberto Barbosa, advogado da União de Movimentos de Moradia (UMM). “Mas a prefeitura dá com uma mão e tira com a outra: o projeto de urbanização da favela São Francisco foi feito à custa de sangue do povo de lá. Um monte de gente despejada, projetos autoritários, sem discussão nas comunidades, com milícia para expulsar as famílias. Foi um processo de cima pra baixo.”

Direito conquistado

O Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo determina em seu artigo 76 que o poder público deve “urbanizar, requalificar e regularizar favelas, loteamentos irregulares e cortiços, visando sua integração nos diferentes bairros”. No 79, explicita que a política habitacional do município deve assegurar o direito à moradia digna e viabilizar a produção de habitações de interesse social para reverter a ocupação de espaços inadequados pela população de baixa renda.

A lei que criou o PDE, em 2002, também pontuou no mapa da cidade uma série de áreas denominadas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), que incluem favelas e loteamentos irregulares, onde o governo deveria aplicar os instrumentos jurídicos previstos na legislação urbanística para legalizar os terrenos, construir conjuntos habitacionais e oferecer aos moradores equipamentos sociais e culturais – parques, escolas, postos de saúde, bibliotecas etc.

No Jardim São Francisco, essas determinações do plano diretor começaram a ser cumpridas apenas dez anos depois de o texto ter sido votado e aprovado pela Câmara Municipal e sancionado pela prefeita Marta Suplicy (PT). “Algumas famílias conseguiram ser beneficiadas, saíram de suas casas e foram pro apartamento. Outras, porém, não foram contempladas com habitação definitiva”, explica Elisabete Silvério, liderança da UMM na zona leste de São Paulo. “Mas, no começo, a prefeitura não queria dar nada pra nenhum morador.”

As obras avançam na ex-favela da zona leste

Elisabete explica que, ao saber das ameaças contra a população do Jardim São Francisco, alguns movimentos sociais começaram a organizar a comunidade. Foi uma forma de fazer com que o direito das famílias fosse respeitado, diz, e que não acabassem todos na rua. “Começamos a negociar e conseguimos que as famílias tivessem pelo menos um paliativo, que é a Parceria Social, um auxílio de R$ 300 por 30 meses. Não ajuda muito, porque mesmo na periferia um aluguel hoje custa em torno de R$ 400. Então as famílias têm que colocar dinheiro do bolso.”

Indenizações

Os escombros espalhados pelo bairro, aguardando a chegada das obras que já avançam aqui e acolá, eram antes a casa para aproximadamente 1,5 mil famílias, estima Elisabete. Desse mar de barracos, apenas dois resistem de pé. Mas por pouco tempo. A adolescente S., de 14 anos, mora num deles com a tia e o tio. Os três – ou melhor, quatro, pois a menina está grávida – terão que deixar o local antes do fim do mês, prazo dado pela prefeitura para que consigam uma casa provisória com o auxílio aluguel. Depois vão para um apartamento. “Mas não pensa que foi fácil, viu”, alerta. “Tivemos que lutar muito.”

A mesma sorte não tiveram Chésima e Lucivaldo. Pais de um filho pequeno, o casal de maranhenses ainda persiste entre quatro paredes de madeira numa paragem mais afastada do Jardim São Francisco. Já quase não têm vizinhança: hoje em volta tudo é escombro. A debandada dos vizinhos foi pra eles também o fim de um negócio. “Depois de um ano morando aqui, investi os R$ 18 mil que tinha guardado e instalei um comércio em casa”, diz a esposa. “Vendia comida, bebida, produto de limpeza.”

Chésima e Lucivaldo dizem que só saem de seu barraco quando a prefeitura restituir o que investiram

Mas vieram os funcionários da prefeitura e, depois, os tratores, e tudo literalmente desmoronou para o empreendimento nascente. “O prejuízo tá lá no caderno, são R$ 3.800 que ficaram devendo pra mim. A prefeitura derrubou as casas e o pessoal foi embora sem pagar”, diz o marido, que caiu em depressão após perder as parcas economias investidas na mercearia. Até agora, dez meses depois, não conseguiu outro emprego. “É uma pena, porque tava indo pra frente. Só a mesa de sinuca me garantia R$ 600 todos os meses.”

A prefeitura já se comprometeu a conceder ao casal uma bolsa aluguel de R$ 300 mensais, como fez com os outros moradores, para que possam liberar a área e permitir o início das obras de urbanização. “Mas a gente só sai quando devolverem o dinheiro que investimos”, conta Chésima. “Ou quando nos oferecerem uma casa nova”, complementa Lucivaldo. Descontentes, questionam: “O que vamos fazer da vida com R$ 300?”

As máquinas seguem remexendo a terra pelo bairro. Da janela do casal é possível ver o novíssimo parque que a prefeitura fez em cima de um antigo aterro sanitário, trocando montes de lixo e urubus por grama, brinquedos e passarinhos. Uma área de lazer dessas era impensável quando a favela dominava a paisagem. Por isso, ninguém no Jardim São Francisco é contra a urbanização. “Mas pra algumas famílias foi muito doloroso”, relativiza Elisabete Silvério, da UMM. “Eles dividiram a comunidade, tudo foi feito de uma maneira muito violenta. E o direito das pessoas só foi garantido depois de muita luta.”