Guerra à ‘Cracolândia’ é visão conservadora, dizem especialistas

São Paulo – A guerra às drogas é uma visão conservadora que exime de responsabilidade toda a estrutura política e a dinâmica social. Fica nos ombros dos usuários a culpa […]

São Paulo – A guerra às drogas é uma visão conservadora que exime de responsabilidade toda a estrutura política e a dinâmica social. Fica nos ombros dos usuários a culpa pela produção, distribuição e consumo de drogas, que assim devem ser punidos e tratados. A crítica foi feita na manhã de hoje (29) pela professora Cássia Baldini Soares, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, durante palestra no seminário A Cracolândia muito além do Crack, na Faculdade de Saúde Pública da USP, em São Paulo. Conforme a professora, que tem experiência em temas como adolescência e juventude, consumo de drogas e educação emancipatória, o usuário acaba sempre visto como vilão, como bode expiatório.

“Hoje temos até alguns recursos para acabar com a Cracolândia. O problema é que as ações não têm articulação com a saúde. Os usuários do crack são tratados como se precisassem de exorcismo, quando necessitam de medidas de proteção social, de acesso a uma educação plena e não adestramento para o mundo do trabalho”, diz. Para complicar, segundo ela,  as propostas se baseiam na ‘guerra à droga’.

Para Cássia, a questão deve ser tratada do ponto de vista da saúde – na perspectiva de saúde como um direito social de todos, usuários de droga inclusive – que deve levar em consideração as determinantes sociais e não as consequëncias do consumo. “A droga, como qualquer produto ou mercadoria, tem valor e função na sociedade que a produz e comercializa, para servir a propósitos e finalidades do sistema capitalista e não como uma substância que apresenta riscos por conta de suas propriedades farmacológicas. 

Campos de concentração

A droga hoje não é apenas a droga da opulência, mas da sociedade desenvolvida. É a droga da miséria, da migração, da periferia. Não podemos isolar o problema da droga dos problemas da violência, da desesperança, do mundo juvenil, do aumento do trabalho mental e da delinquência. Para Dartiu Xavier da Silveira, psiquiatra do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), da Universidade Federal de Sáo Paulo (Unifesp), continua atual a frase dita há mais de 20 anos pelo psiquiatra francês Claude Olievenstein, morto em 2008, que revolucionou a maneira de compreender as dependências químicas e de lidar com os dependentes. “As pessoas que hoje perambulam pela Cracolândia sáo os esquecidos pelo Estado, pela sociedade”, diz.

Segundo Dartiu, criminalizar o usuário é a manipulação ideológica da consciência coletiva que associa a violência à droga, o que a ciência ainda não comprovou – exceto com relação ao álcool. Ele lembrou que as propostas atuais para a Cracolândia lembram muito propostas descabidas que ele conheceu no final dos anos 1980, em pleno surgimento da aids,  quando um médico muito conhecido, que ele não revela o nome, defendeu campos de concentração para usuários de drogas contaminados pelo vírus HIV.

Em sua participação, ele afirmou que a ‘guerra às drogas’ em que o Brasil se inspira é um modelo que fracassou nos Estados Unidos. Ele mostrou também dados sobre políticas repressivas, como a lei seca americana  (1920-1933). No período foram registrados o aparecimento de 500 mil novos delinquentes, 34% de agentes públicos suspeitos de corrupção e 30 mil mortos por beber álcool metílico (usado para limpeza). Ele defendeu ainda políticas de redução de danos em saúde, que propõem diminuir prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas pautada no direito do indivíduo de fazer uso de substâncias psicoativas.

Esperanças

Rubens Adorno, professor e e pesquisador do Laboratório Interdisciplinar de Estudos Sociais em Saúde Pública, da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordena estudos na região da Cracolândia. Em sua participação, ele reclamou dos recursos recebidos para projetos no local, que considera “a migalha das migalhas do Ministério da Saúde”, mas vê a região hoje mais pacificada que no final dos anos 1990, quando os moradores de rua da região eram mais associados a episódios violentos. “O que a gente percebe também é a esperança dessa população em ações do poder público que possam beneficiá-las”, diz Adorno, mencionando uma menor de 14 anos, grávida do companheiro que divide com ela as ruas. “Ela acredita que um dia o Estado vai dar moradia para todos eles.” 

 

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