Para Raquel Rolnik, Santa Ifigênia será ‘terra arrasada’ com projeto Nova Luz

Remoções arbitrárias de moradores em SP serão objeto de denúncia da relatora da ONU para moradia adequada. Para ela, Prefeitura fomentou rótulo de Cracolândia para justificar intervenção

A urbanista Raquel Rolnik, durante debate sobre operação urbana de Kassab no Centro de SP (Foto: Camila Vieira)

São Paulo – As remoções arbitrárias de moradores da região da Santa Ifigênia para a implantação do projeto Nova Luz, de iniciativa da Prefeitura de São Paulo, estarão entre as novas denúncias da relatora da ONU para moradia adequada, Raquel Rolnik. O anúncio ocorreu na noite da segunda-feira (15), durante debate da professora da USP com moradores e lojistas da região atingida pelo projeto Nova Luz, no centro da capital paulista.

Segundo Raquel, pelo menos duas outras grandes obras na capital paulista também serão denunciadas por ela à ONU: as remoções motivadas pela Operação Urbana Consorciada Águas Espraiadas, na zona sul da capital paulista, de responsabilidade da Prefeitura, e a retirada de moradores para construção do estádio Itaquerão, na zona leste de São Paulo.

Em sua análise sobre o projeto de requalificação de 45 quarteirões da região da Luz e da Santa Ifigênia, a arquiteta e urbanista vê elementos “inadmissíveis” que estão destruindo o último bairro da capital paulista que ainda mantém o traçado urbanístico do século 18. A região passou por diversas tentativas de revitalização, mas a atual, avalia, está calcada na destruição da área. “O abandono foi fruto de uma política, não da falta dela.”

Para Raquel, a demolição da região histórica deixou de ser uma discussão localizada dos moradores e comerciantes que serão afetados com quase 50% de desapropriações na área. A gravidade das intervenções da Prefeitura agora são um problema a ser discutido pela cidade. “Esse não é um patrimônio só dos comerciantes e moradores da Santa Ifigênia, mas também de São Paulo como um todo”, frisa.

Durante o debate, a urbanista ouviu relatos desesperados de moradores e lojistas que temem a destruição da área. “Estamos passando por uma megadevastação”, conceituou Ivanete Araujo, da Frente de Luta por Moradia. “Essa política de acabar com a região da Luz, se não fizermos nada, vai acabar com a cidade. Por favor, nos ajude com seu mandato na ONU”, pediu.

São Paulo é uma das últimas cidades do planeta a ter seu centro histórico preservado, principalmente devido às lutas dos movimentos sociais por direito à moradia e à produção de habitação de interesse social, afirmou a especialista. “São Paulo, por incrível que pareça, é uma das últimas cidades do planeta que resistiu até hoje a que seu centro histórico, seu centro antigo, se transformasse nessa espécie de fairplay para um grande capital imobiliário”, apontou.

Após o debate, Rolnik falou à Rede Brasil Atual. Confira os principais trechos da entrevista:

RBA – Qual sua avaliação do projeto Nova Luz que prevê a requalificação de 45 quadras da região da Santa Ifigênia/Luz ao longo de 15 anos, realizado por empresas privadas?
Vários elementos no projeto são inadmissíveis do ponto de vista de política urbana. Para começo de conversa, a região da Luz, Santa Ifigênia é o bairro mais antigo da cidade. É o último bairro que ainda mantém o traçado urbanístico do século 18. É um pedaço super importante da cidade e ele tem sido objeto de ideias e projetos desde a década de 1970. Surgiram várias ideias no sentido de que esse lugar tem de ser preservado e merece ser um lugar importante para a dinâmica da cidade. Essas propostas de intervenção que foram feitas ao longo do tempo, acabaram não sendo implementadas ou foram parcialmente implementadas até chegar numa versão que a gente teve no mandato anterior do prefeito Gilberto Kassab, onde se considerou que a forma mais adequada de se atuar é destruindo a área e transformando-a radicalmente. Com isso, começou-se a promover demolições, que geraram um abandono total e acabaram transformando da área. Em função desse abandono, a área foi tomada por circuitos de dependentes químicos e por outros circuitos da cidade que, quando não encontram lugar para se instalar, se instalam em áreas que estão abandonadas.

O abandono foi proposital?
A coisa mais importante que aconteceu nessa área foi a construção de uma política de abandono. O abandono foi fruto de uma política, não da falta dela. Para poder caracterizar o bairro mais antigo da cidade de São Paulo como ‘cracolândia’ e assim ter uma justificativa para realmente terminar, acabar com o bairro e no seu lugar implementar um projeto de atração, de grande investimentos imobiliários, abrindo uma frente de expansão para grandes empresas. Não precisa dizer que esse projeto não contou absolutamente com o processo de debate público decente. Não só com moradores, usuários e lojistas, mas com a cidade em geral, porque esse não é um patrimônio só dos comerciantes e moradores da Santa Ifigênia, mas também de São Paulo como um todo.

A política urbana da capital paulista reflete movimentos da mercado imobiliário?
Colocando isso numa perspectiva internacional e aí falando como relatora da ONU para moradia adequada, nós percebemos muito claramente o movimento que aconteceu nos últimos 20 anos de financeirização da produção da cidade e da moradia. A hegemonia do capital financeiro sobre a economia internacional e a importância do setor imobiliário como elemento fundamental de um circuito financeiro globalizado. São Paulo por incrível que pareça é uma das últimas cidades do planeta que resistiu até hoje a que seu centro histórico, seu centro antigo se transformasse nessa espécie de fairplay para o grande capital imobiliário. Que resistiu com pautas pelo direito a moradia, pela produção de habitação de interesse social e hoje pela luta também dos lojistas e moradores de Santa Ifigênia. Essa discussão no momento não tem importância só para São Paulo, tem importância internacional nesse sentido.

Concessão urbanística é a melhor forma de lidar com um bairro histórico?
Esse instrumento está previsto no plano diretor mas a grande discussão é como se regulamenta o instrumento. Tem um monte de instrumentos no plano diretor, como IPTU progressivo no tempo, a edificação e o parcelamento compulsórios e vários outros que nunca foram implementados e precisam ser. É na regulamentação do instrumento que se define realmente como ele vai atuar. A definição que foi proposta pela prefeitura é uma privatização da cidade total e absoluta. Já foi anunciado recentemente que já tem uma próxima área pra ser objeto da concessão que é a região da Pompeia (zona oeste de São Paulo).

Os problemas no projeto Nova Luz podem ser motivo de denuncia à ONU?
Como relatora do direito à moradia adequada, meu mandato é bem circunscrito à questão da moradia. Então do ponto de vista da situação de moradores que vão sofrer processos de remoção, de reassentamento ou que estão ameaçados de remoção – que, aliás, já estão acontecendo – isso pode e deve ser objeto de denúncia também num plano internacional. As remoções do ponto de vista do direito à moradia tem de obedecer uma série de condicionalidades que absolutamente não estão sendo representadas no caso desse projeto.

As remoções inadequadas no projeto Nova Luz vão fazer parte de uma nova denúncia?
Como funciona a relatoria internacional: para eu poder apresentar uma denúncia, ela é encaminhada à missão permanente do Brasil em Genebra. Eu encaminhei uma denúncia mais geral sobre o Brasil e as coisas que estavam acontecendo aqui em dezembro do ano passado. Nesse momento, eu estou preparando mais um encaminhamento se referindo não apenas a situações de São Paulo, mas também às situações de outras cidades brasileiras. Dentre as denúncias que eu tenho recebido em São Paulo a operação urbana Águas Espraiadas, o projeto Nova luz e os atingidos pela construção do Fielzão, o Itaquerão, para a Copa 2014 certamente já vão fazer parte dessa denúncia que será encaminhada à ONU.

Há quatro operações urbanas em andamento e mais três previstas na capital paulista. A cidade está preparada para o crescimento de moradores, comércio, escritórios em diversas áreas?
O que está sendo proposto infelizmente não é um adensamento populacional, mas um adensamento construtivo, o que é mais perverso. É um modelo de adensamento de produção de muito metro quadrado de área construída para imóveis para renda média e alta ou espaços de escritórios para alta e média demanda e uma enorme demanda de garagens e estacionamentos. Ou seja, muitos metros quadrados de área construída, muito carro e, perversamente, muito pouca gente. No cômputo geral, me parece que do ponto de vista do uso da cidade, está acontecendo uma diminuição e não aumento da população nos bairros. Embora haja o aumento de congestionamento de carros, aumento de renda e expulsão da população de baixa renda.

Para onde está indo a população de baixa renda?
Essa população está migrando. Já aparece no censo de 2010 muito forte a migração intrametropolitana. Migração de São Paulo e das áreas centrais de São Paulo para municípios da região metropolitana. O que está crescendo mesmo é Francisco Morato, é Carapicuíba, Itapevi. Enfim, municípios da ‘franja’ metropolitana. Não é nem Santo André, São Bernardo, Osasco que são o primeiro anel. É o segundo, o terceiro anel da região metropolitana. O que vai agravar enormemente a condição da metrópole.

Para que tem servido as operações urbanas na capital?
Basicamente para gerar grandes lucros imobiliários, remoção de atividades e populações de menor renda e abertura de grandes frentes de expansão imobiliária para o capital corporativo internacional.

Qual é a melhor alternativa para a região da Luz ser revitalizada com respeito ao aspecto histórico e às pessoas que vivem no local?
Acredito numa proposta alternativa que parta daquilo que é, do que está. Que procure melhorar a situação do que é, de quem está e atrair novos moradores, mas não promovendo uma terra arrasada. Por meio de um processo muito participativo. É muito importante as pessoas saberem que numa cidade como Nova Iorque, por exemplo, existem mais de 70 planos comunitários elaborados pelos próprios moradores e que foram para frente. Estamos falando de uma cidade como Nova Iorque: a capital do capital. Então, isso tem toda chance de acontecer no Brasil.

E o papel do poder público diante do capital imobiliário?
O que é triste é a submissão do planejamento e gestão da cidade a essa força. Ela existe, a pressão é enorme e é internacional. A discussão não é essa. É qual o papel do poder público. Ele tem de abrir espaço para que isso tome conta de tudo ou resistir, defendendo o interesse público do conjunto dos cidadãos? O que São Paulo tem de fazer é o contrário do que está acontecendo atualmente.

 

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