Assassinato de juíza expõe desafio das milícias do Rio à autoridade do Estado

Estimativas extraoficiais dizem que 130 comunidades vivem sob o jugo de grupos constituídos por policiais e ex-policiais armados que atuam à margem da lei

Polícia ocupa comunidade do Rio. Política de segurança é posta em xeque pela ação das milícias (Foto: Vladimir Platonov/Agência Brasil – arquivo)

Rio de Janeiro – O programa de instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em pontos estratégicos do Rio de Janeiro é uma iniciativa até aqui vitoriosa da política estadual de segurança pública. Mas se a ocupação territorial de comunidades antes dominadas pelo tráfico de drogas fortalece o poder público, o mesmo não se pode dizer quando o assunto é a proliferação das milícias – grupos armados constituídos em sua maior parte por policiais e ex-policiais.

No Rio, as milícias desafiam a autoridade do Estado e constituem um poder paralelo que, em alguns casos até vendendo drogas, adota práticas de terror e dominação semelhantes às utilizadas pelos traficantes. De acordo com estimativas extraoficiais da Secretaria de Segurança Pública, cerca de 130 comunidades estariam atualmente sob o jugo das milícias no Rio de Janeiro.

Ao que tudo indica, a mais recente afronta desses grupos ao Estado de direito foi o assassinato da juíza Patrícia Acioli na sexta-feira (12). Aos 47 anos, com fama de linha-dura e conhecida por ser um “martelo pesado” contra maus policiais, a juíza foi executada com 21 tiros quando chegava em casa, no município de Niterói (RJ). As munições usadas para matar Patrícia são de calibres 45 e.40, de uso exclusivo das Forças Armadas e das polícias Civil e Militar. “Usar esses calibres foi uma espécie de assinatura. Os assassinos fizeram questão de nos mostrar que o crime foi cometido por milicianos. Eles quiseram passar um recado”, avalia um policial civil, que prefere não ser identificado.

As investigações sobre o assassinato da juíza ainda estão em curso na Divisão de Homicídios da Polícia Civil, mas os indícios, segundo pessoas que acompanham os trabalhos, apontam mesmo para a participação de milicianos no crime. Após se reunir no sábado (13) por cerca de duas horas com os policias responsáveis pelas investigações, o presidente da Associação de Magistrados do Brasil (AMB), Nelson Calandra, afirmou que pelo menos doze pessoas teriam participado da ação criminosa. “A juíza foi vítima de organizações criminosas e de um sistema processual criminal no qual os criminosos são julgados e saem pela porta da frente, junto com a família da vítima”, resumiu Calandra.

Contra a máfia

Patrícia Acioli trabalhava desde 1999 na 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, um dos municípios mais violentos da região metropolitana do Rio. Sua atuação tinha foco no combate às milícias e grupos de extermínio, além da exploração ilegal de transporte de passageiros, três ramos de atuação notoriamente controlados por policiais e ex-policiais. A juíza também tinha especial interesse nos autos de resistência forjados pela polícia para “transformar” execuções em confrontos. Esse tipo de maquiagem condenou pelo menos 60 policiais nos últimos dez anos, segundo juristas que acompanham o tema.

Em sua edição de segunda-feira (15), o jornal O Globo cita fontes da Polícia Federal que afirmam ter descoberto há dois anos, por meio de interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça, que integrantes da máfia das vans, que explora o transporte ilegal em São Gonçalo, planejavam a morte de Patrícia. O plano foi comunicado à juíza, que ainda assim teria continuado seu trabalho e negado o pedido de revogação da prisão preventiva de toda a cúpula da máfia das vans que se encontrava presa. Estranhamente, a juíza não andava mais com escolta de segurança (que chegou a ser de seis homens), em uma decisão ainda não muito bem explicada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

A Divisão de Homicídios segue essa linha de investigação, já que Patrícia foi a responsável pela decretação de 45 das 70 prisões efetuadas durante a Operação Cooper Crime, deflagrada pela Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas (Draco) há três anos, contra a máfia das vans. Outro foco das investigações está voltado para integrantes da Polícia Militar, já que a juíza determinou o afastamento de cerca de 15 policiais do 7º Batalhão (São Gonçalo) e do 12º Batalhão (Niterói), acusados de participação em grupos de extermínio na região.

Participação diversa

A guerra entre o poder público e as milícias está em pleno curso. Uma prova disso aconteceu no dia 27 de julho, quando a Operação Tríade, organizada em conjunto pela Draco e pelo Ministério Público, prendeu 14 pessoas acusadas de participação em uma milícia que atua há 13 anos no bairro de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio, ponto da cidade tradicionalmente controlado por milicianos. Entre os presos estavam policiais militares, um comissário da Polícia Civil, um delegado aposentado da Polícia Federal, um militar da Aeronáutica e um assessor parlamentar. O elenco diverso e enraizado na estrutura do Estado revela a complexidade do problema.

O grupo controlava de forma ilegal o transporte alternativo, a venda e distribuição de botijões de gás e o acesso ilegal a TVs por assinatura e internet banda larga, além de explorar máquinas caça-níqueis e cobrar pela distribuição de água encanada que, na verdade, era feita por uma empresa. Segundo a polícia, o grupo deve responder por crimes como homicídios, estupros, agiotagem, tráfico de influência, usurpação de propriedades e até mesmo crime ambiental. “Quem não se submetia às regras era expulso ou morto pelo bando, que se apropriava dos terrenos das vítimas”, diz o delegado Alexandre Capote, titular da Draco.

Poder e política

Coordenadora do Grupo de Estudos em Justiça Criminal e Segurança Pública da Universidade Cândido Mendes, a antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz afirma que o que está em jogo com a expansão das milícias é o que chama de “negócios da proteção”, cuja sustentação vem dos políticos, geralmente seus maiores beneficiários.

“A segurança pública é implodida enquanto um bem coletivo é transformado em mercadoria. Isso no Rio de Janeiro já vem de longa data, acompanhando um processo de ‘clientelização’ diversificada dos recursos públicos de segurança. Nesse cenário, o que está em jogo é uma disputa comercial pelos negócios da proteção, como TV e banda larga ilegais, distribuição de gás, corretagem informal de imóveis, taxa de vida e tudo mais que seja útil para a fabricação de ameaças.”

O controle territorial, segundo Jacqueline, serve para “garantir monopólios na extração, na extorsão de cifras vultosas de impostos informais que alimentam o caixa das campanhas eleitorais, um tributo para seguir funcionando e alimentando trajetórias políticas que ambicionam governar por meio do crime”. No Rio, políticos como o ex-deputado estadual Natalino José Guimarães e seu irmão, o ex-vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, estão atualmente presos por participarem da milícia conhecida como Liga da Justiça, que atua na zona oeste do Rio.