Vigilantismo na internet não tem precedentes em países democráticos, diz jurista

Apelidado de AI-5 Digital por críticos, o substitutivo do senador Eduardo Azeredo traria consequências mais graves do que leis semelhantes de outros países, sustenta Tulio Vianna, especialista em direito eletrônico

Imagem vinculada ao Mega Não, movimento de blogueiros contrários ao projeto de Azeredo (Foto: Reprodução)

O substitutivo projeto de lei 89/03 do Senado de crimes na internet é ruim tecnicamente e desastroso do ponto de vista político, avalia o professor de direito penal da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico Túlio Vianna. Para ele, o vigilantismo estabelecido pelo texto é sem precedentes em países democráticos, o que ameaça o direito à privacidade e a liberdade de expressão.

Ele concedeu entrevista à Rede Brasil Atual para avaliar as duras acusações de Azeredo aos críticos. O relator do substitutivo classifica como má-fé os pontos apontados por defensores de direitos humanos e blogueiros, que chamam o projeto de AI-5 Digital, comparando os efeitos da legislação proposta ao Ato Institucional nº 5, promulgado em 1968 pelo presidente Costa e Silva, durante o regime militar.

Entrevista

Túlio Vianna

professor de direito penal da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico

O especialista em direito informático é contrário ao projeto e apresenta, em seu blogue, os 10 principais motivos por que o texto é ruim tecnicamente e desastroso politicamente. A questão mais sensível é o vigilantismo que seria estabelecido caso os provedores fossem obrigados a manter e analisar os arquivos de log do usuário, em que são armazenadas informações de origem e conteúdo acessado. O risco de violação da privacidade pode se tornar uma ameaça também à liberdade de expressão. Além de imprecisões, ele critica argumentos apresentados a favor do substitutivo, como o combate à Pedofilia e o aumento das fraudes bancárias.

Na entrevista, o professor discute a participação de parlamentares no processo. Ele considera natural a reação do autor do substitutivo no momento em que a sociedade civil conseguiu se mobilizar e “pôr o dedo na ferida”. O senador Aloísio Mercadante é criticado por ter aceito o vigilantismo, algo não lhe “ parece adequada para um senador de esquerda”.

“Em vez de rediscutir a lei de direitos autorais, pretendem impor, por meio do vigilantismo, essas leis para manter o estado das coisas tal como se encontra. É uma tentativa meio desesperada de conter o compartilhamento de arquivos.” – Tulio Vianna

Sobre as mudanças propostas pelo atual relator da matéria na Câmara, Júlio Semeghini (PSDB-SP), Vianna avalia que são mudanças muito pontuais que apenas tornam o texto menos pior. “O problema é que, do ponto de vista jurídico e técnico, o projeto é muito ruim (…) não tem como ser remendado”, sustenta.

A proposta do advogado é a formação de uma comissão de especialistas com magistrados, delegados e acadêmicos dedicadas à questão, para assegurar a qualidade técnica e a precisão dos artigos. Seria necessário que a legislação previsse, além de deveres, também direitos.

Confira os principais trechos da conversa.

RBA – Como o senhor vê a reação do senador Azeredo às críticas?

“O problema não é guardar o log por três anos ou seis meses, o problema é que sejam guardados. Se há vigilância e controle de acesso, por si só, já é uma ameaça à liberdade de expressão. Essa liberdade só existe se não houver vigilância.” – Tulio Vianna

É natural que ele não fique contente, que se sentir ameaçado quando se começa a colocar o dedo na ferida. Até então, o projeto estava sendo discutido por pessoas interessadas nesse vigilantismo. É natural que ele venha com agressividade. Mas as crítica são técnicas, e falo na condição de professor de direito: o projeto é mal feito do ponto de vista jurídico, (incluindo) a redação dos tipos criminais e não há muito como fugir disso. E do ponto de vista político, tem o vigilantismo. Está lá com todas as letras que o provedor vai ter de guardar log de acesso de usuário, o que é absurdo.

RBA – O deputado Julio Semeghini o atual relator da matéria na Câmara, mas foi autor de projeto de teor semelhante que tramitava na Casa. Que perspectiva isso traz ao projeto?

“O projeto é mal feito do ponto de vista jurídico e não há muito como fugir disso. E do ponto de vista político, tem o vigilantismo” – Tulio Vianna

Por ser mal feito do ponto de vista jurídico, o projeto não tem como ser remendado. O que deveria ser feito é acabar com ele, criar uma comissão de juristas especialistas na área, para fazer uma lei que trate o assunto de uma forma democrática, com discussão na sociedade. Isso não foi feito. O Azeredo juntou os amigos dele, um grupo de advogados ou de juízes ligados a ele para fazer a lei, o que não é democrático.

RBA – Como seria uma construção mais adequada?

Precisamos de uma comissão plural, que tenha magistrados, delegados e também advogados de defesa e professores universitários para produzir uma lei técnica.

“O Azeredo juntou os amigos dele, um grupo de advogados ou de juízes ligados a ele para fazer a lei, o que não é democrático.”– Tulio Vianna

O projeto atual é ruim do ponto de vista técnico e desastrosa do ponto de vista político porque prevê essa vigilância em relação aos logs de usuários, o que inviabiliza, na prática, qualquer programa de inclusão digital. Imagine uma rede wireless aberta, se tenho que guardar log. Como se faria isso?

RBA – O deputado Julio Semeghini deu declarações prometendo algumas mudanças: mudar o prazo de armazenamento de logs, tirar a obrigação dos provedores de notificar indícios de crime e especificar acessos que seriam tipificados.

Esses pontos são mínimos, não resolvem, apenas tornam o projeto menos pior. Está longe de resolver a crítica que fazemos. O problema não é guardar o log por três anos ou seis meses, o problema é que sejam guardados. Por exemplo, no Irã, a internet é bloqueada e eles tinham o Twitter como forma de comunicação dentro desse drama. Se há vigilância e controle de acesso, por si só, já é uma ameaça à liberdade de expressão. Essa liberdade só existe se não houver vigilância. O tempo (de armazenamento) não é uma mudança significativa.

RBA – E sobre a obrigação de notificar indícios de crime?

Se aprovado, seria totalmente inconstitucional. É inviável, o provedor não tem como saber tudo de conteúdo que se publica. Essa mudança é o mínimo, é tão absurdo que até eles viram.

RBA – Como o senhor avalia a atuação do senador Aloísio Mercadante no projeto? Essa participação sempre é citada por Azeredo como forma de afirmar que houve diálogo.

Do ponto de vista técnico, o substitutivo do Mercadante era ainda pior do que o do Azeredo. Não só na parte de redação, mas na construção da lei em si. Do ponto de vista político, não me parece que tenha feito qualquer avanço, ao contrário, aceitou o projeto original com seus pressupostos básicos. Apesar de serem de partidos que fazem oposição entre si, a participação do Mercadante não no sentido contrário da de Azeredo. Ou por falta de informação técnica, ou ele não percebeu, ou julgou que estava correta a posição de vigilantismo – algo que não me parece adequado para um senador de esquerda. Mas foi a posição dele, a gente tem de respeitar.

RBA – Levando em conta a articulação de movimentos contrários à lei, pode haver a reformulação que o senhor defende?

“A lei teria de conceber não só deveres, mas direitos ao usuário de internet. A sociedade civil está muito organizada hoje, demorou, mas aconteceu. Estamos vendo a repercussão na internet.” – Tulio Vianna

Acredito que sim. Se a aprovada, querendo ou não, seria incorporada ao nosso ordenamento jurídico uma lei mal feita, com imprecisões técnicas muito fortes e com a questão do vigilantismo – algo sem precedentes em outros países democráticos. Entre aprovar uma lei com qualidade tão baixa e consequências políticas tão desastrosas, e descartá-la para criar comissão de juristas para um lei nova, seria um ganho em termos democráticos. A lei teria de conceber não só deveres, mas direitos ao usuário de internet. A sociedade civil está muito organizada hoje, demorou, mas aconteceu. Estamos vendo a repercussão na internet.

RBA – Países como Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e a França mais recentemente, foram estabelecidas leis combatidas com argumentos de defesa à privacidade. Essas legislação não podem ser comparadas ao vigilantismo?

O nosso é pior, mas o deles é problemático também. A questão é o lobby das empresas de direitos autorais. No exterior, então, nem se fale. O que querem é fazer uma vigilância do compartilhamento de arquivos na rede, que é uma realidade. O usuário doméstico compartilha arquivos com violações de direitos autorais, a maioria faz isso. Em vez de rediscutir a lei de direitos autorais, pretendem impor, por meio do vigilantismo, essas leis para manter o estado das coisas tal como se encontra. É uma tentativa meio desesperada de conter o compartilhamento de arquivos. Ao fazer isso, o preço pago é a vigilâcia de todos os usuários. A liberdade de expressão e o direito à privacidade vão ser colocadas em risco. É um preço muito alto para se combater algo que, pessoalmente, não considero tão grave – nem deveria ser crime, mas isso é outra discussão. A questão não me parece justificar passar por cima de direitos fundamentais tão importantes.

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