cidadania

Era uma vez a casa do espanto

Condenação por chacina de 27 presos em 2002 e primeiros trabalhos de ressocialização movem Estado brasileiro para reverter situação de Urso Branco, presídio que virou sinônimo de barbárie

divulgação/tribunal de justiça de Rondônia

Um enorme barulho surge de repente. Não é um estrondo. É constante, quase uniforme, uma soma de vozes que assim, a uma certa distância, fica difícil de entender. É estranho saber também de onde vem. É caótico para identificar.

Sob o sol de Porto Velho, quase ao meio-dia na capital de Rondônia, a uns poucos passos dali está a origem do ruído. A quadra central do presídio de Urso Branco recebe os detentos de uma de suas alas. São muitas dezenas, mais de uma centena de homens que se espalham por essa espécie de tanque de concreto.

Lá embaixo, em um canto, evangélicos entoam apaixonadamente suas preces. Do lado oposto, a ignorar diversas outras ações, um rapaz corta o cabelo de um colega e já tem outros à espera. Ao centro se desenrola uma confusa partida de futebol, com um número incerto de jogadores em cada time, chinelos espalhados pela quadra e um bocado de times “de próximo”.

A cena é caótica. Colados a uma grade, alguns internos pedem uma série de favores ao agente de turno. Esses pedidos, às vezes como súplicas, os “morcegos” (cuecas) pendurados nas grades dos pavilhões e as condições sanitárias claramente abaixo do desejável não deixam esconder os problemas do presídio. 

Por outro lado, quem tem receio de encontrar a mesma penitenciária na qual cabeças humanas serviram como bola para uma macabra partida de futebol acaba vendo um cenário menos estranho que o esperado. “Está longe de ser uma unidade-modelo, claro, mas em relação ao que era em 2002 melhorou demais. No controle administrativo da população carcerária, na infraestrutura. Hoje, posso te dizer que há muitas bem piores”, avalia André Cunha, diretor de Políticas Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e presidente da Comissão Especial que traça objetivos para melhorar Urso Branco.

A unidade de Porto Velho ainda sofre com superlotação: 672 detentos em um espaço para 470, mas nada que se compare ao número incerto de 2002. Agora, cada cela tem em média 10 internos, contra 25 a 30 nos piores momentos – nos quais, aliás, a divisão chegava a ser fictícia. Desde o fim de 2007 não há registro de morte, uma conquista para um lugar antes habituado a acertos de conta capitais.

Foi em 1º de janeiro de 2002 que começou o mais triste episódio da história de Urso Branco, inaugurado em 1996. À ocasião, uma tentativa de fuga foi reprimida a balas. O diretor da unidade naquela época, Weber Jordano Silva, tinha em sua gaveta uma ordem judicial recente que determinava a remoção dos detentos do chamado “seguro”, área existente em praticamente todos os presídios com a função de segregar os ameaçados de morte e os condenados por estupro. Ao seguir a determinação, o resultado foi o que se esperava: 27 mortes.

DIVULGAÇÃO/TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE RONDÔNIACalmaria
Cela e corredor registrados em maio passado: “Em relação ao que era em 2002, melhorou demais”, diz o diretor de Políticas Penitenciárias

Pressão externa

Naquele mesmo ano, organizações da sociedade civil ingressaram com ação no Sistema Interamericano de Justiça contra o Brasil. A Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu, de lá para cá, oito resoluções pedindo mudanças – a responsabilização em caso de não cumprimento é da União, e não apenas do governo estadual.

Algumas dessas resoluções incentivaram ou forçaram a adoção de medidas-chave pelo Brasil. O centro do trabalho foi a formação, em 2004, da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), que passou a se reunir periodicamente nas dependências de Urso Branco para reverter os problemas.

A comissão é formada por peticionários da ação internacional, representantes de Ministério da Justiça, Itamaraty, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, governo estadual, Judiciário e Ministério Público locais. A cada encontro, novas demandas são apresentadas e a administração de Urso Branco e o governo de Rondônia são cobrados.

Se hoje o presídio está longe do ideal, pelo menos é um lugar controlado. No auge do descontrole, era difícil entender a lógica interna de funcionamento. Durante a noite, agentes do Estado não se permitiam entrar em boa parte da unidade e, mesmo ao longo do dia, muitos presos circulavam livremente, com direito a todo tipo de regalia, enquanto outros, com muita sorte, tinham direito a um banho de sol por semana.

A pressão externa e a articulação entre poderes possibilitaram, em 2006, a identificação e a transferência dos principais líderes, primeiro passo para que o Estado pudesse retomar controle sobre a unidade.

“Foram feitas outras ações no sentido da desarticulação, de separar os grupos, e os servidores se sentiram mais encorajados para ficar próximos dos presos, trabalhar dentro dos pavilhões. Foi o grande momento da retomada”, destaca Gabriel Tomasete, ex-secretário-adjunto da Secretaria de Justiça de Rondônia.

A bem da verdade, muitas coisas caminham a passos lentos. Só neste ano tiveram início os primeiros trabalhos de ressocialização. Por enquanto, há apenas uma biblioteca, um grupo de detentos que costura bolas esportivas e outro que pinta quadros. Todos os trabalhos são muito incipientes e envolvem uma pequena parte dos internos. A direção do presídio promete para breve oficinas de informática e de marcenaria.

Sérgio William Domingues Teixeira, juiz titular da Vara de Execuções e Contravenções Penais de Porto Velho, que acompanha o caso de Urso Branco com atenção, não vê outra saída para nenhuma unidade prisional. “A aposta na ressocialização é certa. É verdade que você pode apostar na ressocialização e o apenado voltar a cometer um crime. Mas, por outro lado, é certo que, se você tratar a pessoa como um animal, ela vai reagir como um animal”, afirma.

Atividades

Acerto de contas 

O braço do Judiciário é fundamental para recuperar Urso Branco. Se foi a ordem de um juiz o pretexto para juntar presos do seguro com os demais em 2002, foi uma ordem de Teixeira que, em 2008, proibiu que fossem realizadas novas entradas na unidade. À época, Urso Branco ainda tinha mais de mil internos.

O Judiciário é também o instrumento para resolver uma das pendências com a Corte Interamericana. O último mês marcou o início dos julgamentos dos envolvidos na chacina de 2002. Ao todo, foram condenados 11 dos 14 réus levados a júri popular. A decisão, ao longo de seis extensas sessões com duração de dois dias, foi por condenações que variam entre 405 e 486 anos.

Todos os julgados nessa primeira “bateria” são presos. Agora, faltam mais três detentos à época, que estão foragidos e tiveram de ser convocados por edital. A maior dificuldade será a responsabilização de três diretores do presídio, que recorreram ao Tribunal de Justiça de Rondônia para tentar evitar o júri.

Em outra frente, a presença do governo federal garante as melhorias necessárias ao sistema prisional de Rondônia. Não é à toa que o diretor do Depen preside a Comissão Especial que se reúne em Porto Velho. André Cunha conhece as deficiências do estado,  influencia no direcionamento de verbas e, com isso, espera que ao longo deste e do próximo ano o sistema local ganhe 1.500 novas vagas, ajudando a acabar de vez com a superlotação de Urso Branco.

Evidentemente, a construção de mais presídios não soluciona todos os problemas. O controle sobre a unidade não pode mais ser perdido. Medidas adotadas pela atual diretoria tentam inviabilizar a entrada de drogas e de armas no complexo. Os funcionários, sem exceção, precisam passar por revista todos os dias ao entrar. Wanderlei Pereira Braga, diretor da unidade desde o ano passado, afirma que quer estimular o diálogo entre agentes e detentos. “Uma ideia que a gente coloca para o agente penitenciário é que ele está ali para tentar ressocializar aquela pessoa, manter um diálogo com o preso”, afirma.

Espera-se agora o momento em que a Corte Interamericana poderá, com todo o prazer, dar “alta” ao Estado brasileiro nesse caso. Ainda restam muitas dúvidas, mas pelo menos algumas respostas foram dadas e há, no horizonte, caminho aberto para outras.