A várias vistas: Mordida nos lábios foi início de história de amor de Norma e Cachita

Fuga da ditadura, choro e segredos. Primeiro casal homoafetivo de mulheres a ter a união reconhecida judicialmente, tinha como desafio aceitar a própria sexualidade e lidar com a família

Em 30 anos, casal separou-se apenas uma vez, quando Norma teve de cuidar da mãe por alguns meses (Foto: Arquivo pessoal/Facebook)

Buenos Aires – Uma mordida nos lábios, daquelas que se utilizam nos galanteios, foi o pontapé inicial da história que desembocou, neste mês, no primeiro casamento entre mulheres da América do Sul. Foi em Barranquilla, na Colômbia, que Norma deu o sinal para Ramona, que respondeu com outra provocação: duvidou que a até então amiga teria coragem de repetir o gesto quando estivesse sóbria – uma festa, sob a euforia da dança e do rum, foi onde a paquera ocorreu.

Série: A várias vistas

Um amor que não foi à primeira vista, mas a várias. “Já gostava muito dela. Depois de dois anos, gostava de uma maneira diferente, eu a queria para mim. Ainda bem que ela falou, porque, se dependesse de mim, estaria há 30 anos calada”, afirma Ramona, confessando a timidez.

Embora Norma tenha tomado a iniciativa, foi exatamente ela quem teve o processo mais difícil de reconhecimento da própria sexualidade. Os preconceitos interiorizados ao longo da vida não lhe permitiam que aceitasse ser algo que até então repudiava. O processo de amadurecimento foi longo e penoso. Norma, que já havia deixado La Plata e os estudos de biologia ao longo da ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1970), viu-se forçada a viajar novamente durante o último período militar argentino (1976-1983).

Ela havia sido presa durante alguns dias em 1976. Depois de liberada, conseguiu uma licença do trabalho, no Hospital Infantil de La Plata, para tentar se recuperar física e psicologicamente. “Nesse ínterim, mataram três médicos, não sei quantas enfermeiras, muitas famílias de médicos. E roubaram todos os objetos que puderam roubar (dos mortos)”, lamenta.

Era partir ou morrer. Quando Norma foi se despedir das pessoas, a caminho da Colômbia, um episódio foi marcante. Duas vizinhas insistiam que, se a pudessem “rasgar” um pouquinho por dentro, certamente apareceria algo que estava escondido. Uma delas abraçou Norma e tascou em seu ouvido um “você me ama”. Essa frase, assim, em vez da tradicional externação dos próprios sentimentos, tratava de falar dos sentimentos alheios, e despertou aquilo que ela gosta de chamar de “paixão do descobrimento”. A partida para outro país teria de cicatrizar não apenas as marcas da ditadura, mas as questões internas: Norma deixava a Argentina destroçada física e psicologicamente.

Fragilizada, ela contraiu uma infecção pulmonar e teve de superar o estado de coma em um hospital de La Paz, na Bolívia, e continuar a viagem por terra até chegar a Barranquilla. Na Colômbia, um período de muito choro e muita conversa acabou por fechar as feridas da sexualidade – as da ditadura ficaram para depois.

Por lá, Ramona havia ido passar férias com o filho e o homem com quem vivia. Com a família, decidiu ficar. Antes disso, até os 28 anos, quando deixou o Uruguai, Ramona havia tido uma convivência guiada integralmente pelos padrões heterossexuais da sociedade. Criada pela avó durante a infância, sentiu o gosto da frustração quando foi impedida de seguir estudando. “Porque dizia que as meninas saíam todas… putas. Tinham mais liberdade no secundário, iam mais à rua, então ela achava que se ‘emputeciam’ todas. Pobre velha”, recorda.

Mais tarde, passou a trabalhar como enfermeira e, aos 26, teve seu filho. Dois anos depois, já na Colômbia, teria de esperar mais tempo para descobrir-se – mais precisamente, até que a ditadura empurrasse Norma para fora do país.

Depois da festa

A vida na Colômbia ia bem, bailando, trabalhando, mas a morte do pai de Norma forçou o casal a voltar à Argentina. Era 1991. A mãe, desamparada, precisou da companhia da filha durante nove meses, único período, ao longo de 30 anos, em que ela e Ramona estiveram separadas.

O regresso à Colômbia foi mais curto do que se esperava. A mãe de Norma rapidamente acusou os sinais de Alzheimer e novamente foi preciso regressar. Elas passaram pela casa na cidade natal, em Corrientes, depois mudaram-se para Buenos Aires e, por fim, para o endereço atual, no Parque Chas, um tranquilo bairro da capital argentina.

A casa de paredes descascadas, cômodos simples, cede o espaço do pátio para as reuniões de cooperativas nas quais elas militam. Norma é tesoureira de um coletivo habitacional que espera, dentro de cinco anos, entregar suas primeiras unidades. Ramona trabalha com outras mulheres na pequena oficina têxtil montada na parte da frente da casa e cuida dos filhos dos vizinhos que saem para trabalhar.

Gosta de ver televisão e quase sempre tem algum comentário sobre uma notícia que viu no aparelho que passa o dia todo ligado – especialmente aos finais de semana, quando elas torcem por Boca Juniors, Peñarol do Uruguai e o Juniors de Barranquilla. No fim de tarde, preparam o mate e se colocam a tomá-lo acompanhado de bolachas e cigarros. Norma, às vezes, gosta de fazer pinturas e cerâmica no ateliê improvisado nos fundos.

Mas, dentro da Teoria da Relatividade improvisada pelo casal, um minuto longe é uma eternidade. “Temos um amor muito bonito. Quem dera que todos encontrassem um amor de prazer, de companheirismo, de vontade de estar sempre juntas”, afirma Norma, que perdeu a mãe em 2008. Foi só a partir desta triste data que elas puderam voltar a pensar em si.  No entanto, naquele momento o país já era outro.

 

A várias vistas
A série A várias vistas narra o primeiro casamento entre mulheres da história da América do Sul. Norma Castillo e Ramona Arévalo, ambas de 67 anos, casaram-se em abril deste ano, em Buenos Aires, depois de 30 anos de convivência. A união foi autorizada por uma das decisões judiciais favoráveis concedidas nos últimos meses. Mas nem tudo são flores nessa história, e ainda deve haver mais resistência à oficialização do casamento.

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