Entrevista: medicina continua a serviço dos crimes de tortura em todo o mundo

Por conhecer a fisiologia da dor, o médico pode sofisticar os métodos, explorar fraquezas e fobias, ‘ressuscitar’ a vítima, mantê-la viva para o prosseguimento do interrogatório e falsificar um atestado de óbito

Monumento contra a tortura, em Recife. Há quase 500 anos a Medicina coloca seus conhecimentos a serviço desse tipo de crime. (Foto: Marcusrg/Flickr)

São Paulo – Apesar de mudanças na lei em diversos países, criação de códigos de ética e avanços no campo dos direitos humanos e do Direito Internacional, os crimes de tortura não só continuam a ser praticados como método de obtenção de informação com uso da força como ainda contam com o respaldo da Medicina – um elemento indispensável no aprimoramento da prática. A constatação é da advogada Virginia Novaes Procópio de Araujo, que durante dois anos pesquisou o ato médico no crime de tortura para sua dissertação de mestrado pela Faculdade de Direito da USP. 

“Durante a Segunda Guerra Mundial, o papel do médico era criar uma ‘linha de produção da morte’ que aparentasse algo científico. Hoje, podemos dizer que a maleficência médica ‘evoluiu’ no sentido de aprimorar a obtenção de informações com menores danos físicos e, portanto, menos evidências de tortura”, disse a Virginia.

Segundo ela, procedimentos hoje classificados como meio de obtenção de informação de segurança nacional são, na verdade, atos de tortura mascarados, brechas legais encontradas para justificar o uso da força, com participação decisiva dos médicos. “Na atual guerra norte-americana contra o terrorismo, por exemplo, a Cruz Vermelha não teve acesso aos prisioneiros, o que evidencia desrespeito dos médicos ao Protocolo de Istambul, que obriga a documentação de abusos a que foram submetidos os prisioneiros do exército, e o pedido de ajuda internacional”, disse. “Estes profissionais também violaram seu papel de médico de guerra, conforme expõe as Convenções de Genebra, que prevê auxílio de saúde para todos, inclusive inimigos.”

Para a advogada, os médicos incorrem em comportamento maleficente e violam o seu próprio código de ética ao utilizar conhecimentos técnicos para aprimorar métodos de tortura e contornar a lei, seja reduzindo evidências de danos físicos aparentes dos torturados, seja compartilhando informações obtidas em exames que revelem fraquezas físicas e psicológicas dos torturados a serem exploradas, ou até mesmo falsificando atestados de óbito. 

Conforme ela, relatórios recentes das organizações Médicos pelos Direitos Humanos e Comitê Público contra Tortura, de Israel, denunciam o comportamento maleficente de médicos envolvidos nesses crimes naquele país, onde a própria Suprema Corte parece aceitar uso de força física em interrogatórios com a justificativa da necessidade de obter informação “para o salvamento de vidas”.

“Em similar postura, a existência do Centro de Detenção de Guantánamo, em Cuba, onde os Estados Unidos mantêm centenas de prisioneiros de guerra, é um forte indício de que a tortura continua a ser praticada pelos norte-americanos, sob o nome de ‘técnicas reforçadas de interrogatório’”, apontou. Conforme ela, o relatório oficial da CIA [Agência Central de Inteligência dos EUA] sobre essas técnicas afirma ser indispensável a presença de um médico e um oxímetro para avaliar a quantidade de oxigênio do interrogado e eventual risco de morte no método ‘afogamento simulado’. “Apesar de o presidente norte-americano Barack Obama ter admitido que essa prática não seja mais utilizada, pouco se sabe do que ocorre em Guantánamo”, completou.

Na entrevista a seguir, Virginia dá mais detalhes sobre a aliança entre a Medicina e a tortura. Confira os principais trechos.

A tortura depende da medicina?

Conforme o autor norte-americano Steven H. Miles, ela não existe sem um médico. Por conhecer a fisiologia da dor, ele pode sofisticar os métodos, explorar fraquezas e fobias, ‘ressuscitar’ a vítima, mantê-la viva para o prosseguimento do interrogatório e até falsificar um atestado de óbito para ocultar a tortura cometida. Para isso geralmente realçam algum traço de saúde do ‘paciente’, como problemas cardíacos, que podem justificar um ‘infarto’.  Na guerra contra o terror, quando se lia ‘morte por causas naturais’, podia-se concluir se tratar de morte por tortura.

Como a medicina tornou-se cúmplice dos torturadores?

No século 16, o rei espanhol Carlos V teria ordenado a médicos avaliassem a resistência de réus a uma sessão de tortura. Mas o primeiro registro oficial da participação médica data de 1532, para determinar métodos que não matassem uma pessoa doente e fraca. Até o século 18, torturar era legítimo e os médicos eram representantes das autoridades, embora não agissem diretamente. Já a partir do século 20, eles passaram a ter um papel ativo. Além da dor física, passaram a utilizar aspectos psiquiátricos, farmacológicos e psicológicos. A lavagem cerebral foi aperfeiçoada com a privação de sono, simulação de execução, isolamento, ameaças e observação da tortura alheia – técnicas que não deixam vestígios.

Médicos torturadores são comuns em todas as culturas?

Conforme as informações obtidas, oriente e ocidente tiveram o mesmo grau de crueldade. Os soviéticos torturavam seus opositores. Mas a atual medicalização da tortura só chamou a atenção no início dos anos 1970, com denúncias da imprensa. Na Segunda Guerra, médicos japoneses submetiam os presos, ainda vivos e sem anestesia, a amputações e dissecação de órgãos, além de experimentos com armas biológicas, enquanto que os alemães experimentavam métodos de esterilização, programa de eugenia, práticas de extermínio e falsificavam os atestados de óbito. Como Mengele, com experiências genéticas terríveis que buscavam o ‘ser humano perfeito’, a raça superior, a até mesmo uma forma para colorir de azul a íris. Autor de inúmeros crimes, ele conseguiu fugir e viveu por mais de 35 anos em países como Paraguai e Brasil, escondido por simpatizantes de ideias nazistas. Há informações de que morava no Brasil em 1979, quando morreu afogado no mar após sofrer um derrame. Muitos dos experimentos desses médicos serviam também para melhorar as condições dos soldados alemães. Fizeram cruéis experimentos de hipotermia, de pressão (para os pilotos de aeronave), contaminação por doenças, testes com bombas. Como se pode ver, na Alemanha nazista a atividade médica estava tomada pelas ideias de Hitler.

Como é a participação na ‘guerra contra o terror’?

Durante a guerra contra o terror, seja em prisões no Iraque, no Afeganistão ou mesmo em Guantánamo, foi criado um novo termo para legalizar os métodos que aparentemente não traziam sofrimento e dor indispensáveis para a configuração do crime de tortura: técnicas reforçadas de interrogatório. Ou seja, entre outras práticas, prender a pessoa em uma caixa escura com a ameaça da colocação de um inseto que lhe causa fobia, forrar um tubo de PVC com plástico bolha para não deixar vestígios físicos de espancamento, jogar água num pano sobre o rosto de um preso deitado, para assustar e intimidar sem afogar de fato(waterboarding). Isso tudo na presença de médicos e psicólogos. Se o interrogado se feria ou tinha uma parada cardíaca, o médico estava lá para socorrê-lo. Se morresse, o legista adulterava o atestado de óbito. Segundo vítimas, o tratamento médico era frio e sem compaixão.

E no Brasil?

Até 1971, eram violentos castigos físicos. Depois, durante a ‘Operação Condor’, com técnicas criadas pela Agência Central de Inteligência (CIA), dos Estados Unidos, incorporaram o campo psicológico, com tortura em salas frias, escuras, com ruído de alta frequência, medicamentos hipnóticos, ou em salas brancas, muito iluminadas. O medo se aliou à força física. As sessões de castigos físicos eram precedidas pela tortura psicológica.

O que aconteceu com médicos torturadores brasileiros, como Harry Shibata e Amilcar Lobo?

Mal tive acesso aos documentos brasileiros. Um artigo do médico norte-americano Steven H. Miles, um dos maiores experts no tema, mencionava casos brasileiros. Nos sites do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e Conselho Federal de Medicina (CFM), não se obtém nenhuma informação detalhada sobre Harry Shibata, por exemplo. Mas no site da Anistia Internacional há a descrição de que o médico teve sua licença cassada pelo Cremesp, em 1980, por seu envolvimento com tortura. Porém, em 1982, o CFM discordou do julgado regional e o Dr. Shibata teve a cassação anulada. Em 1995 o caso foi reaberto e até hoje se espera o conhecimento da sentença final. Uma fonte brasileira que me ajudou é o livro Desafia o nosso peito – resistência, tortura e morte durante o regime militar brasileiro: as quedas na guerrilha urbana e os desaparecidos na insurreição do Araguaia: subsídios para a Comissão da verdade, do psiquiatra e psicanalista Adail Ivan de Lemos. 

Há um capítulo sobre médicos brasileiros envolvidos na tortura durante a ditadura. Harry Shibata é mencionado, Amílcar Lobo também. Harry Shibata era médico legista, então era um “ocultador” de óbitos causados pela tortura. Por sua vez, Lobo participava diretamente na tortura. Ainda assim, é importante frisar que Lemos afirma, no começo de sua obra, que seu livro é fruto de extensa pesquisa bibliográfica e, apesar de publicado, está apto a eventuais correções, em razão de arquivos não abertos em mãos dos militares. E afirma que o mais importante é estabelecer debates para que, por meio deles, se aproximar da verdade histórica. 

 A quem cabe punir esses médicos?

Os médicos da Segunda Guerra foram julgados perante um tribunal de exceção. Alguns médicos nazistas se suicidaram. Dos julgados em Nuremberg, alguns receberam pena de morte, outros foram condenados à prisão e poucos foram inocentados. Alguns tiveram sua licença médica cassada. Acredito que o médico que se envolve com tortura viola seu Juramento Hipocrático, o código de ética médica de seu país, as noções éticas da Associação Médica Mundial, e os princípios da Bioética. Ademais, ajudam ou praticam um crime internacional. Por isso devem ser julgados perante uma corte criminal nacional ou internacional e também submetidos a procedimento disciplinar por seu Conselho de Medicina, desestimulando assim que outros médicos se envolvam com tortura. Como muitos países ocultam e protegem médicos torturadores, há a chamada sanção social, em que vítimas e a sociedade civil acabam denunciando os crimes. Mas defendo a apuração de um crime com o devido processo legal e investigatório. E na falta de documentação escrita e vestígios físicos, a palavra das vítimas devem ser levadas em consideração. 

Como devem ser punidos?

A participação médica deve ser devidamente apurada e, conforme o caso, punida com cassação da licença, detenção e reparação monetária para a vítima e sua família. As Cortes criminais e Conselhos de Medicina devem penalizar os culpados. A única forma de a nova geração de profissionais se dedicar apenas à Medicina é admitir o problema, divulgá-lo e unir esforços para a devida punição. Os estudantes de Medicina devem revisitar o passado para compreender o presente e prevenir o futuro de novos abusos e violações dos princípios bioéticos.

Como combater o crime de tortura?

O endurecimento de leis não inibe a prática criminosa, mas uma mensagem de não impunidade pode ser eficaz. A norma em si não impediria a tortura, mas sim o reconhecimento de que é inaceitável e que não se trata de um método de obtenção de informações fidedignas. Em sua obra “Dos delitos e das penas”, Cesare Beccaria já dizia que uma pessoa sob tortura confessa tudo, inclusive crimes que não cometeu.