Ditadura

Bate-boca com delegado marca visita de entidades à antiga sede do DOI-Codi em SP

Grupo liderado pela Comissão de Direitos Humanos da OAB verificou estado de abandono em que se encontra edifício que abrigou torturas e assassinatos durante ditadura

Delegado do 36 DP, no Paraíso, bateu boca com ex-presos políticos do DOI-Codi durante visita de reconhecimento (Foto: Paula Sacchetta)

São Paulo – Bate-boca e informações desencontradas marcaram visita que a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB-SP) organizou na tarde de hoje (29) às antigas instalações do DOI-Codi, o Destacamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna que as Forças Armadas mantinham na capital durante a ditadura. O edifício onde morreram, entre outros, Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho se localiza nas ruas Tutoia e Tomás Carvalhal, bairro do Paraíso, na zona sul, atrás de onde desde aquela época funciona o 36° DP da Polícia Civil.

Os representantes da OAB-SP estavam acompanhados de ex-militantes que foram presos e torturados no local, como a advogada Darci Miyaki, de 67 anos, além de membros do Grupo Tortura Nunca Mais e o Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça, entidades que lutam pela elucidação dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante os anos da repressão. O presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, deputado Adriano Diogo (PT), também integrou o grupo. A imprensa foi convidada a seguir o cortejo.

A visita começou com bate-boca. Antes de iniciar o périplo pelas antigas instalações do DOI-Codi, os representantes da OAB-SP foram pedir autorização ao delegado titular do 36° DP, Márcio de Castro Nilson, que prontamente assentiu com a iniciativa. “Até eu estou curioso para saber a verdade”, concordou, sorrindo, antes de começar um debate acerca da utilização da delegacia pelos agentes da repressão. “Estou cansado de dizer que o 36° DP nunca fez parte do DOI-Codi.”

A versão do delegado foi confirmada por alguns dos ex-presos que sofreram nas mãos do regime. Eles relataram que não haviam sido encarcerados ou torturados dentro das instalações do 36° DP, mas defenderam a tese de que o prédio servia de “fachada” para as atrocidades que ocorriam logo atrás, onde efetivamente funcionou o DOI-Codi. Castro Nilson, que disse ter trabalhado na época como investigador do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), outro órgão da repressão, negou a versão de que a delegacia dava guarida à tortura praticada pelo DOI-Codi. Então começou a discussão.

“As instalações do 36° DP nunca pertenceram à Operação Bandeirantes (Oban) ou ao DOI-Codi”, reagiu. “Não estou dizendo que a Polícia Civil e a Polícia Militar não fizeram parte da chamada ‘repressão’ naqueles tempos. Por uma coincidência sou delegado aqui e sempre digo: o DOI-Codi nunca foi aqui.” Castro Nilson também não negou a existência da tortura como prática recorrente da ditadura. “Saber que existia tortura eu sei pelas histórias. Nunca vi. Mesmo sendo investigador de polícia na época eu não participava. Mas não dá para negar que houve tortura.”

Darci Miyaki (esq.), pessoa que mais tempo permaneceu presa no DOI-Codi, e Cláudio França, da OAB-SP, participaram da visita (Foto: Paula Sacchetta)

Como o papo se estendia além do previsto – o grupo queria apenas a autorização do delegado para visitar o local –, o deputado Adriano Diogo resolveu intervir. Disse que havia ficado preso ali durante seis meses e que o objetivo era apenas fazer uma excursão às instalações do DOI-Codi. “Mas ficou preso aqui nestas dependências?”, questionou Castro Nilson, ao que o parlamentar petista respondeu: “Aqui era a fachada legal da masmorra cruel que existia aqui atrás. Funcionavam intimamente ligada uma coisa com a outra. As pessoas que aqui trabalhavam sabiam de tudo o que acontecia lá atrás”.

Como não houve acordo e o tom das interpelações só fazia aumentar, a conversa foi interrompida pelos membros da OAB, que decidiram dar continuidade à visita. O grupo saiu ao pátio do 36° DP e enfrentaria novas dificuldades para cumprir seu objetivo: as portas do antigo DOI-Codi estavam fechadas, e a autorização do delegado Castro Nilson aparentemente não tinha validade para abri-las. Foi preciso que um funcionário ligasse para seus superiores no Departamento de Polícia Judiciária da Capital (Decap) e então obter a “ordem expressa” para destrancar o local – o que foi feito após 20 minutos de espera.

Abandono

O que se vê dentro de onde funcionou um dos centros de repressão da ditadura é abandono. São cerca de dez salas vazias, distribuídas em dois andares, algumas com camas de ferro velhas. Muita poeira. As torneiras estão sem água, algumas janelas não têm vidro, portas e fechaduras quebradas, alguns pisos faltando no chão. Reformas realizadas depois da passagem dos presos políticos, além do tempo decorrido desde que estiveram no local, fizeram com que muitos deles tivessem dificuldade de identificar onde ficavam celas e salas de tortura. Ninguém soube afirmar com certeza, por exemplo, em qual cômodo o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, foi fotografado após “enforcar-se” com o próprio cinto numa janela.

Uma das salas de onde se localizava o DOI-Codi, utilizada como depósito da Polícia Civil paulista (Foto: Paula Sacchetta)

“Os locais onde foram realizadas as torturas estão sendo usados como depósito de sucata, móveis velhos, como pudemos constatar pela visita, além de estar totalmente desconfigurados do que era naquele período”, atesta Lúcio França, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. “A Ordem dos Advogados fará um relatório para que seja preservada a memória disso aqui e, se realmente foi desconfigurado, que retorne ao estado anterior. Queremos que seja criado aqui ou um memorial ou um museu da tortura.”

Também visitado pela comissão, o edifício anexo ao que foi o prédio principal do DOI-Codi é um depósito de cadeiras e material de escritório utilizados pelo Decap. Do outro lado de um muro construído após a ditadura – e onde presos políticos garantem era a entrada da “masmorra” – funciona o estacionamento da subfrota do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil. Também há tanques de combustível para abastecer as viaturas. No pátio, carros apreendidos e destruídos. Dentro do prédio, mais salas vazias, um escritório, camas para os funcionários de plantão e arquivos relativos às atividades atuais da repartição.

O investigador de polícia encarregado do local, Alexandre Teixeira, disse que a divisão do DHPP deve deixar o local até o próximo 1° de julho. Isso porque, relaciona, corre no Conselho estadual de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) um processo de tombamento das instalações do DOI-Codi. A Secretaria de Segurança Pública não confirmou a data, mas já foi informada de que a Secretaria da Cultura possui interesse no imóvel. O Condephaat afirma que o processo está em “estudo de tombamento” desde 14 de maio de 2012 e que só após concluída essa fase será apreciado pelos conselheiros do órgão.

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