Guaranis-Kaiowás têm saúde mental extremamente vulnerável, diz especialista

Segundo Pedro Paulo Bicalho, do Conselho Federal de Psicologia, essas populações estão angustiadas e em pânico permanente, o que compromete a sua saúde física e mental

Guaranis-Kaiowás vivem em pânico e estresse permanente pelas ameaças de despejo, o que afetam sua saúde (Cimi/MS)

São Paulo – Organizada pelo Tribunal Popular da Terra, com a participação de representantes de diversas entidades, entre elas o Conselho Federal de Psicologia (CFP), uma expedição percorreu, em janeiro passado, uma faixa que vai da região da Grande Dourados até a divisa com o Paraguai, no Mato Grosso do Sul, onde vivem indígenas Guaranis-Kaiowás. “Nosso objetivo era dar mais visibilidade a todas as violações dos direitos humanos que ocorrem com essa população, sem perder de vista também aspectos de saúde”, diz o coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP, psicólogo Pedro Paulo Bicalho, que integrou a comitiva. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a grave situação nas aldeias.

O que você observou nessas regiões?

A demora na demarcação das terras é uma questão enorme para eles. Sem essas terras demarcadas, eles estão ‘ilegalmente’ numa terra que, ancestralmente, é deles. Essa situação provoca uma série de outros problemas. As escolas indígenas, por exemplo, só podem funcionar em regiões demarcadas. Essas escolas são importantes porque nelas as crianças aprendem tudo em tupi-guarani, que é a língua que eles falam normalmente e é fundamental para a preservação de laços. Para eles, o português é uma segunda língua, assim como o inglês é para nós. Então, eles não aprendem matemática, ciências e outras disciplinas em português, e sim, na própria língua. Sem essas escolas, as crianças têm de ir para as escolas comuns, como as nossas, e isso é um problema imenso até para a transmissão da cultura indígena. 

E a saúde deles?

A saúde indígena é outro ponto importante. Para se ter uma ideia, eles se referem aos médicos como ‘Dr. Paracetamol’. Segundo a fala dos próprios indígenas, esses profissionais só receitam esse medicamento para combater todo tipo de dor. Eles também reclamam muito da falta de uma política de saúde indígena, em que os médicos exerçam uma medicina aplicada às suas particularidades. Ao chegarem ao ponto de se referirem aos médicos dessa maneira fica claro que eles não se sentem beneficiados por esse tipo de saúde oferecido.

O que você viu de mais grave?

O mais preocupante são os comprometimentos de saúde mental que eles têm. Não estou falando em loucura propriamente dita, e sim, em uma forte ansiedade em toda aquela população. Eles passam o tempo todo falando sobre o ‘risco que é viver’, conforme suas próprias palavras; estão o tempo todo alarmados com o que pode lhes acontecer, com riscos de despejo, com os fazendeiros comprometidos com o agronegócio, de serem vistos como um grande problema. Em termos de saúde mental, é uma população extremamente vulnerável. E o que é mais grave é que não se trata de uma angústia infundada. 

Como é o comportamento deles?

Durante a expedição, vimos que frequentemente eles acordavam apavorados, em pânico, porque as informações que deveriam chegar corretamente não chegam. As aldeias estão em locais em que é difícil falar ao telefone, acessar a internet. Estão totalmente alheios às informações corretas. Então surgem muitos boatos que causam pânico naquelas pessoas. Vi que a aldeia se mobilizava e todos ficavam desesperados. Esse desespero frequente compromete a saúde mental desses povos.
Pelas suas próprias palavras, os Guarani-Kaiowás ‘têm um sofrimento no peito que chega e que não quer sair’. É uma população angustiada e essa angústia produz uma série de complicações fisiológicas em qualquer ser humano, inclusive neles: pressão alta, estresse e todas as complicações associadas. É absurdo que uma população originária da terra, que vive na terra, isolada, caçando e pescando para sobreviver, esteja em estresse permanente.

Estresse permanente?

É uma população que sofre com a falta de informação e de proteção do próprio estado brasileiro; uma população em eterno litígio com o agronegócio que está tomando o Mato Grosso do Sul com plantações de soja, impondo a eles uma série de problemas e constante ameaça física. O número de lideranças assassinadas nos últimos dez anos é impressionante: quase 300 pessoas mortas, como caciques, pajés e professores das escolas indígenas, que são alvo do agronegócio. Estão totalmente jogados à própria sorte. Como eles mesmos dizem, são brasileiros que o Brasil não conhece e não quer conhecer. As políticas públicas não chegam de maneira correta a eles. O que chegam são gambiarras das nossas políticas públicas. É preciso pensar a cultura indígena como uma cultura que merece atenção especial no campo da saúde, da atenção psicológica, da segurança, da demarcação de terras, que assegurem as especificidades daquela cultura.

Demarcar resolve?

Apenas demarcar as terras não resolve porque essa discussão não é meramente legalista. Muitas coisas podem ser produzidas a partir da demarcação. Nossa expedição produziu um relatório e a questão tomou conta da mídia. A psicologia brasileira tem 50 anos de regulamentação e a nossa Comissão de Direitos Humanos, 15. Um tempo em que muitas relações foram construídas. Quando chegamos às aldeias, vimos que temos muito a trabalhar nesse sentido. Não é botar cada indígena no divã, claro, mas pensar de que maneira toda essa violação e vulnerabilidade afetam a própria constituição deles próprios. Esse estado de alerta constante constituiu outro tipo de sujeito. Interessa à psicologia estudar que sujeito é esse e de que ele sofre; pautar a questão indígena como uma questão para o Brasil. A psicologia tem esse papel de pautar discussões. Acredito que a questão indígena é fundamental. Precisamos assegurar que eles continuem vivendo como historicamente construíram o seu modo de vida. A lógica de produtividade e da eficácia, mantidas pela lógica do capitalismo, não podem ser aplicadas a todos os brasileiros. Eles não podem ser atingidos por elas.