Despejadas de ocupação, famílias vivem há 35 dias ao relento no centro de São Paulo
Grupo acampado em condições precárias na praça do Correio vive junto há quatro anos, desde reintegração violenta promovida pela Polícia Militar, e continua à espera de solução definitiva
Publicado 04/10/2012 - 19h34
São Paulo – O tempo seco tem incomodado a maioria dos paulistanos que esperam a chuva com grande expectativa. Mas para as 97 famílias acampadas na praça do Correio, no centro da cidade e a menos de meio quilômetro da sede da prefeitura, é melhor que não caia nenhuma gota. Desde que foram despejadas de um prédio na avenida Ipiranga, em 28 de agosto, as famílias vivem em moradias improvisadas, feitas de lona e madeira. Elas, com mais precisão do que qualquer instituto de pesquisas meteorológicas, sabem que desde que estão morando lá, há 35 dias, choveu apenas duas vezes, o que foi suficiente para destruir alguns barracos e inutilizar colchões e cobertores.
O prédio em que viviam, abandonado há nove anos, antes de ser ocupado estava entre os prédios que a própria administração de Gilberto Kassab (PSD) havia decretado de interesse social (DIS) em 2010. A ordem de reintegração de posse indicava que as famílias deveriam ser “alojadas em abrigos provisórios”. A prefeitura ofereceu vagas em albergues. A opção foi rechaçada, já que nesses locais homens e mulheres da mesma família não podem ficar juntos. “No albergue você só pode ir para dormir à noite. Durante o dia você fica na rua. Na rua nós já estamos. E vamos ficar aqui até que eles resolvam nossa situação”, diz Luzia Pinto, de 70 anos, uma das coordenadoras do acampamento. “Eu era casada, aí meu marido morreu. Ou eu comia ou pagava aluguel. Imagina quem tem filho pequeno”, diz Luzia, que trabalhava como recepcionista até se aposentar por invalidez, depois de um acidente. Hoje ela recebe um salário mínimo, o equivalente a R$ 622.
O grupo está junto há pelo menos quatro anos. Antes de ocuparem o prédio na avenida Ipiranga, viveram sete meses na ocupação Alto Alegre, em um terreno no bairro de mesmo nome na zona leste. As pessoas saíram de lá depois de serem surpreendidas durante a madrugada por uma reintegração de posse promovida pela Tropa de Choque da Polícia Militar. O proprietário do terreno à época era processado por dano ambiental, e devia aos cofres públicos cerca de R$ 2 milhões. Ao serem despejadas, as famílias receberam a promessa de que 600 unidades habitacionais seriam construídas no local e que elas poderiam voltar. Mas isso nunca ocorreu. Depois de três meses, a verba emergencial dada a elas foi cortada. O grupo chegou a acampar diante da Câmara Municipal e no viaduto do Chá, ao lado da sede da administração municipal. Desamparados, ocuparam o prédio. Dessa vez, nenhum auxílio financeiro foi oferecido.
Segundo o Observatório de Remoções da Universidade de São Paulo, lançado na última semana, pelo menos 7.666 famílias já foram removidas na cidade nós últimos anos e milhares que vivem em 486 favelas correm o mesmo risco em função de grandes intervenções urbanísticas promovidas pelos governos estadual e municipal e por empresas privadas na cidade.
Trabalhadores
No acampamento, uma cozinha improvisada foi montada. Doações, restos colhidos no Mercado Municipal e compras feitas em esquema de rateio são guardadas a chave. Maria da Glória, de 72 anos, é a responsável pelo preparo das refeições. Também com o grupo desde a remoção no Alto Alegre, ela conta que o jantar é a refeição mais disputada, já que na hora do almoço a maioria dos sem-teto está no trabalho.
“A maioria das pessoas que passam aqui acha que nós somos mendigos. Mas aqui a maioria é trabalhador”, explica Carina dos Reis Araújo, de 27 anos, acampada com a filha de 10 anos e o marido.
Os dois adultos fazem ‘bicos’. Ela, de noite, como recepcionista, e seu marido, como motorista. “A gente não quer nada de graça. Queremos algo que a gente possa pagar”, conta enquanto se prepara para o trabalho.
De fato, durante a visita da RBA ao acampamento apenas algumas mulheres e crianças estavam presentes, mas o mar de colchões espalhados pelo chão não deixa dúvida da quantidade de gente que vive no local e das condições precárias da moradia improvisada. “No calor é um forno, no inverno um gelo”, descreve Carina.
Para usar o banheiro, os sem-teto contam com a solidariedade de um bar que funciona de segunda a sábado. “Aos domingos é um sufoco. Banho, a gente toma em um prédio da avenida São João”, conta Luzia. O prédio a que se refere é a ocupação São João, cuja ordem de reintegração de posse já foi expedida e só não foi executada porque o proprietário do imóvel não garantiu os meios para que os ocupantes retirassem seus pertences de lá.
Depois do despejo, o edifício que abrigava em condições razoáveis as famílias na avenida Ipiranga voltou a ser fechado e não cumpre nenhuma função social, como determina a Constituição. Os ex-ocupantes desconfiam que o prédio foi comprado pela própria prefeitura, mas não há informação oficial a respeito. Assim como não se sabe quantos e quais dos prédios que constavam do DIS foram de fato desapropriados. “A terra era para ser para as pessoas, não para os ratos e cobras como era no Alto Alegre antes da gente ocupar lá. Não para ficar fechado como o prédio da Ipiranga que está lá enquanto a gente está nessa situação”, desabafa Luzia. Que parece ser a única que não se importa com o prenúncio de chuva. “A gente já acostumou. Vai ser só um banho a mais.”
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