Moradores de ocupação em São Paulo dizem sofrer violência policial sistemática

Sem-teto afirmam que agentes da PM agridem e torturam

Além das más condições de saúde e higiene, as famílias que vivem na ocupação Sete têm de lidar com a repressão policial (Foto:Ocupação Criativa)

São Paulo – Boa parte da sociedade paulistana pode não saber da existência da ocupação Sete, edifício abandonado na rua da Independência, no bairro do Cambuci, zona sul de São Paulo, onde vivem 370 pessoas. A Polícia Militar (PM), contudo, parece conhecê-la bem. Os sem-teto que ali vivem dizem, quase em coro, que a agressão policial faz parte do dia a dia da ocupação. Nesta semana, os moradores devem instalar o sétimo portão no edifício. 

Os seis anteriores foram estourados por agentes da PM nos últimos cinco anos. De acordo com eles, entrar ou sair do prédio, entre as 22 horas e a meia-noite pode ser perigoso. Pelo menos três vezes por semana, policiais entram no edifício nesse horário e, em busca de drogas, abordam as pessoas que veem à porta e vasculham as casas e os barracos dos moradores. Segundo eles, há duas semanas um jovem foi preso sob a acusação de tráfico de drogas, e arrastado até a viatura pelos pés. Antes de ser levado, teria sido torturado por cerca de 30 minutos.

Com 12 anos de existência, a ocupação Sete, na Rua da Independência, em São Paulo, abriga cerca de 125 famílias de sem teto

A ocupação Sete não se parece em nada com aquelas que existem nos edifícios Mauá e Prestes Maia, no bairro da Luz, no centro da cidade. Ela não é coordenada por nenhum dos movimentos de sem-teto da cidade. “É uma ocupação anárquica”, disse o ativista social e sociólogo Jeff Anderson, que coordena o Ocupação Criativa, um projeto de habitação para o local. “Trata-se de uma invasão voluntária”. O prédio pertencia a uma gráfica, está abandonado há mais de 15 anos e ocupado há 12. Não há nenhuma disputa judicial, segundo os moradores, visando a reintegrá-lo. São 125 famílias, vivendo em quatro andares, em más condições de saúde e de higiene. Há energia elétrica e água, mas há um problema na saída de esgoto, no primeiro andar, que inunda o piso. “Ele será reparado em breve”, afirma Anderson.

Em visita ao edifício, os moradores gostam de falar de tudo, mas, a princípio, relutam em tocar no tema da polícia. Temem represálias. Nunca prestaram queixas à Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo, nem a ninguém. Eles dizem que se o fizerem, os policiais os tratarão com mais violência. “Não gostou? Por que você não reclama pra Corregedoria? Denuncia a gente e você vai ver, vamos botar fogo nesse prédio inteiro”, teria dito um dos agentes ao auxiliar de caixa Rafael Guilherme da Silva, de 24 anos, um dos moradores.  “Eu tenho medo do que eles possam fazer com a gente , disse outro morador, o catador de materiais recicláveis Genivaldo de Souza Santos, 46, “mas, se a gente não falar nunca, eles vão fazer isso pra sempre”. Depois de muita insistência, decidem contar.

As visitas da polícia são sistemáticas. Eles encostam as viaturas a duas quadras do edifício, com as sirenes e os faróis desligados e caminham silenciosamente até o edifício. Lá dentro, os pequenos apartamentos feitos de concreto e os barracos de madeira têm suas portas abertas violentamente e reviradas inteiramente, narram os moradores. O número de agentes varia, mas há sempre dois que encabeçam as operações. O nome deles? Não se sabe, pois eles escondem suas identificações antes de entrarem no prédio. Dizem aos moradores para serem identificados somente por apelidos – “Zóio de gato” e “Menor do chapa”. 

Santos já perdeu a conta de quantas vezes sua casa foi vasculhada. “Ninguém está pedindo pra eles não entrarem. Só queremos ser tratados com mais respeito. Eles chegam, batem, dão tapa, gritam, xingam e humilham”, disse. Sua filha, Letícia Ferreira de Freitas, de 21 anos, contou que certa vez arrombaram a porta de sua casa. “Vocês não podem entrar aqui assim. Eu estou grávida”, teria dito ela aos agentes. “E daí? Eu quero que você perca o bebê”, teria respondido um dos agentes. Ela contou que é revistada por agente homens constantemente, o que viola a legislação.

Um estudante de 15 anos foi abordado há um mês pelos policiais. Eles o revistaram à procura de drogas, apontaram o revólver em sua cara, interrogando-o, e o agrediram. Ele pintava o novo portão enquanto conversava com a reportagem. “Todos os outros que colocamos, para dar segurança ao prédio, foram arrombados”, contou. O último portão foi arrancado por uma viatura, de acordo com o motoboy Rafael Felício, filho da empregada doméstica Maria Aparecida Oliveira, de 60, moradora da ocupação. “Eles amarraram uma corda no portão e aceleraram”, contou. “Se colocarem de novo, vamos derrubar a bala”, teriam dito os policiais, em ameaça aos moradores.

Moradores afirmam que a mancha de sangue é de Josiel Bitencourt Santos, torturado e preso há duas semanas (Foto:Ocupação Criativa)

Maria viu pessoalmente há duas semanas a prisão de Josiel Bitencourt dos Santos, de 25, que não tem qualquer família na cidade, e foi até o 8º Distrito Policial, no bairro da Mooca, zona Leste da cidade. A acusação era tráfico de drogas. De acordo com ela, na abordagem, eles forçaram uma confissão, espancando-o. Ensanguentado, ele foi arrastado até a viatura. “Bateram tanto no menino que as crianças começaram a chorar. Eles passaram meia hora interrogando-o na frente de todo mundo, para todos verem, sem o menor pudor”, contou Maria. Cerca de 20 moradores entrevistados alegaram ter já sofrido violência policial ou a testemunhado.

Questionada sobre essas denúncias, a Polícia Militar informou que abriu uma investigação na Corregedoria para apurar os nomes dos agentes. Nesta semana, os moradores decidiram denunciar a ação ao Ministério Público Estadual. O maior receio deles, no entanto, é ter de deixar a ocupação. “A gente não tem outro lugar para ir. Se der um despejo aqui, a gente vai ficar tudo na rua”, disse Genivaldo Santos.

A região do Cambuci vem sofrendo uma série de investimentos imobiliários. A rua da Independência faz parte da Operação Urbana Mooca-Vila Carioca, um dos projetos da prefeitura que busca intervir na organização da cidade. As operações vêm promovendo uma série de despejos de imóveis ocupados nas áreas que compreendem. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano afirma que projetos para a rua estão em fase de estudo, devendo ser concluídos até o fim do ano, e não se sabe ainda se deverá haver alguma proposta para o número 382, onde está localizada a ocupação.

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