Comissão da Verdade admite apurar crimes contra indígenas durante ditadura

Em reunião na capital paulista, organizações de defesa dos direitos humanos lembram que, mesmo tendo sido dizimados pelo regime, índios brasileiros permanecem no esquecimento

São Paulo – A Associação de Juízes para a Democracia (AJD), o Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e a Comissão Nacional Justiça e Paz, ligada à igreja católica, foram recebidos ontem (12) pelos integrantes da Comissão Nacional da Verdade, que investiga os crimes cometidos pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, e pediram a seus membros que se dediquem a elucidar as violações aos direitos humanos cometidas contras as populações indígenas durante a ditadura.

O encontro foi realizado na capital paulista e durou cerca de uma hora e meia. “Expusemos a necessidade histórica de desvendar os abusos praticados contra os povos originários”, relata Keranik Boujikian, membro do conselho executivo da AJD. Segundo a juíza, os três membros da comissão presentes ao encontro (Paulo Sérgio Pinheiro, Rosa Maria Cardoso da Cunha e José Carlos Dias) mostraram-se sensíveis ao pedido. “Mas ainda não estabeleceram uma metodologia de trabalho”, ressalva.

“Por que analisar apenas os mortos e desaparecidos políticos?”, questiona Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais São Paulo, que apresentou à comissão os resultados preliminares de uma pesquisa que analisa todos os 4,3 mil discursos proferidos no Congresso Nacional entre 1946 e 1985 com a palavra ‘índio’ e os 1,527 mil que ostentam, juntos, os termos ‘índio’ e ‘massacre’.

“Só no povo waimiri-atroari, que enfrentou a construção da rodovia BR-174, morreram mais de dois mil indígenas”, lembra Zelic. “Informações do antropólogo Darcy Ribeiro, que aparecem em alguns discursos de parlamentares, dizem que em 1964 existiam mais de 6,4 mil yanomamis na Amazônia. Em 1979, sobraram apenas 640.” O vice-presidente do Tortura Nunca Mais São Paulo explica que as políticas de extermínio foram conduzidas por setores ligados à exploração de recursos minerais interessados em ocupar a terra dos índios.

Subcomissões

“Nossa prioridade, porém, são os casos de tortura, mortos e desaparecidos políticos”, pondera Rose Nogueira, presidente do Tortura Nunca Mais de São Paulo, ela mesma uma das pessoas que sofreram nos porões da ditadura. “Ainda assim, acreditamos que, se algumas subcomissões temáticas forem constituídas, a Comissão da Verdade vai encontrar um monte de coisa que nem imagina.” Além dos abusos cometidos contra os índios, Rose sugere a criação de pequenos grupos para averiguar especificamente a censura sobre a imprensa e as artes.

“Privar a população do acesso à cultura e informação é uma violação grave dos direitos humanos, e a comissão deverá se dedicar a esses temas”, propõe. No que depender do Tortura Nunca Mais de São Paulo, até mesmo a política econômica da ditadura será devassada. “Temos de elucidar melhor os impactos da inflação e da dívida externa que assolaram o país durante o regime. Quanta gente morreu de fome, perdeu a casa e amargou a miséria por causa das decisões do governo? Foi criminoso.”

Documentos

A reunião de ontem também informou à Comissão da Verdade sobre em que pé anda a digitalização do acervo do Projeto Brasil Nunca Mais. São 710 processos judiciais recuperados por advogados e defensores dos direitos humanos nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM) a partir de 1979, e que em 1985 deram origem ao relatório Brasil Nunca Mais sobre a repressão política no país durante a ditadura. Na época, a compilação do material foi encabeçada pelos religiosos dom Paulo Evaristo Arns, rabino Henry Sobel e reverendo James Wright.

“Já temos 702 processos judiciais digitalizados, desde o inquérito policial até a sentença dos tribunais”, explica Rose Nogueira. Esse trabalho foi realizado na Universidade de Chicago, onde os microfilmes dos documentos ficaram protegidos até o ano passado por iniciativa de pastores protestantes estadunidenses. “Os oito processos restantes já começaram a ser escaneados na Universidade de Campinas (Unicamp)”, diz Marcelo Zelic.

Aos processos judiciais serão adicionadas as cerca de três mil páginas dos documentos de Genebra: correspondências trocadas entre dom Paulo e o Conselho Mundial de Igrejas, sediado na cidade suíça, sobre a situação dos direitos humanos no Brasil durante o regime. Além disso, o acervo contará ainda com os arquivos sigilosos do arcebispo emérito de São Paulo. “São cartas que chegavam à Cúria denunciando casos de tortura, sequestro e desaparecimento”, resgata Zelic. “Muitos deles foram escritos por presos políticos e vazaram clandestinamente. São inéditos.”

Tudo será colocado à disposição dos membros da Comissão da Verdade, com mecanismo de busca eletrônica para facilitar a localização de nomes, datas e localidades. Segundo o vice-presidente do Tortura Nunca Mais, o grupo demonstrou grande interesse pelo projeto: ofereceram-se inclusive a verificar a probabilidade de conseguir um escâner de alta tecnologia para acelerar a digitalização dos documentos. “No ritmo atual, devemos disponibilizar os arquivos em março de 2013”, diz Zelic. “Com novos equipamentos, poderemos abreviar o processo.”

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