Procuradora vê decisão ‘política’ em recusa de ação contra Ustra

Ministério Público Federal vai recorrer por considerar que argumentação de juiz federal em São Paulo desconhece decisão da Corte Interamericana e a própria jurisprudência nacional

São Paulo – O Ministério Público Federal vai recorrer da decisão da Justiça Federal em São Paulo de rejeitar ação penal contra o militar reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado da ativa na Polícia Civil Dirceu Gravina, acusados pelo sequestro de um militante de grupos de resistência à ditadura (1964-85).

“Foi uma decisão política”, lamenta a procuradora da República em São Paulo Eugênia Gonzaga, que trabalhou em parceria com o grupo de Justiça de Transição do MPF, que reúne representantes de vários estados. Foi a segunda ação penal movida pelos procuradores. E a segunda rejeitada em prazo breve, ainda que existam algumas diferenças. A primeira, contra Sebastião Curió Rodrigues de Moura, coronel da reserva do Exército, pelo desaparecimento de integrantes da Guerrilha do Araguaia, foi recusada em 48 horas.

Desta vez, transcorreu-se quase um mês para que o juiz Márcio Rached Millani negasse sequência à possibilidade de condenar Ustra, figura das mais “famosas” do regime autoritário. E o magistrado em questão despendeu 18 páginas para argumentar a decisão, contra duas do colega do Pará. O teor, porém, é parecido: não se pode tocar nos crimes do passado.

O MPF argumenta na ação que o desaparecimento de Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, duas vezes presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, é um crime que ainda não acabou, já que não há o corpo ou alguma prova de que se trata de alguém assassinado. Após alguns anos no exílio, Aluízio retornou ao Brasil em 1970 e foi visto pela última vez pelos familiares no começo de 1971. Para o juiz, não é factível pensar que Palhano possa estar vivo porque, a esta altura, teria 90 anos, “idade que, com certeza, não atingiria caso ainda estivesse em cativeiro”.

“Se tivesse de denunciar por homicídio usando os argumentos dele, ele iria rejeitar porque não é assim que se prova homicídio. Nos casos de desaparecimento, no mundo inteiro faz-se a denúncia por sequestro porque não tem como dizer que a vítima está morta”, rebate a procuradora. “Se ele considera que houve realmente uma morte, tinha de dar a oportunidade para nós entrarmos com pedido por ocultação de cadáver.”

Para embasar o pedido, que pode resultar em pena de dois a oito anos, os procuradores se baseiam em duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar pedidos de extradição apresentados pela Argentina em casos de colaboradores da ditadura daquele país (1976-83), a maioria dos ministros manifestou-se no sentido de que, de fato, os crimes cometidos por eles ainda estavam em curso, dado que os corpos não haviam sido localizados.

Mas o magistrado preferiu se apegar a outra decisão do STF, tomada em abril de 2010, negando a possibilidade de que a Lei de Anistia não abarcasse violações de direitos humanos cometidas pelos agentes da repressão. O Ministério Público já havia previsto esta possibilidade, tanto que em sua ação lembrou que os crimes como o sequestro, de caráter continuado, não estão incluídos pela anistia aprovada em 1979 por um Congresso ainda sob a ditadura.

Além disso, em dezembro de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso do Araguaia. Entre outras coisas, a entidade integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA) manifestou que o Estado brasileiro não deveria se valer da autoanistia como mecanismo para impedir a apuração e a punição dos crimes cometidos durante a ditadura. A jurisprudência regional, à qual o país se submeteu de espontânea vontade, é de que os crimes de direitos humanos não prescrevem. Todas as nações condenadas pelo órgão deram cumprimento às sentenças, investigando os fatos e condenando os envolvidos. 

O magistrado, porém, considera que apenas uma decisão da revisão do STF poderia abrir espaço para a punição penal de torturadores. “Constata-se a total incompatibilidade entre o decidido pelo Supremo Tribunal Federal e o decidido pela Corte Interamericana e, seja qual for o caminho escolhido, haverá o desrespeito ao julgado de uma delas”, sustenta na decisão.

“A decisão do STF sobre a Lei de Anistia é anterior à decisão da Corte. Sempre que temos uma decisão mais recente proferida por tribunal competente, automaticamente todo o Judiciário segue a mais recente”, afirma a procuradora. “O Brasil vai ficando numa posição cada vez mais desconfortável perante a Corte. Vai perder muito de sua credibilidade. Talvez a presidenta Dilma Rousseff entenda que simpatia será suficiente para contornar questões diplomáticas. É um triste exemplo.”

Leia também

Últimas notícias