Comparato: ‘Precisamos enxergar nosso passado criminoso’
Professor emérito da Faculdade de Direito da USP vê resquícios da ditadura na universidade e cobra apuração dos elos entre o regime e a instituição
Publicado 25/05/2012 - 12h06
São Paulo – O crescente debate da sociedade brasileira sobre a apuração dos crimes ocorridos durante a ditadura (1964-85) vai aos poucos tomando formato na maior instituição de ensino superior do país, a Universidade de São Paulo (USP). Esta semana, sob as arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, um ato reuniu professores e juristas para cobrar a investigação dos elos entre a USP e o regime, e um abaixo-assinado passou a circular pela internet para pressionar o reitor, João Grandino Rodas, a autorizar o funcionamento de um colegiado.
Durante o evento, o professor emérito Fábio Konder Comparato recordou as conexões dos 21 anos de repressão com um passado de escravidão legal e todo poder aos detentores da propriedade privada. Depois, conversou rapidamente com os jornalistas, voltando a cobrar a instalação de uma comissão da verdade na USP. “ É preciso que todos nós, brasileiros, enxerguemos o passado criminoso que nós tivemos em vários períodos de nossa história, como, por exemplo, a escravidão. É preciso que nós saibamos enfrentar essa verdade difícil”, afirmou, tecendo ainda críticas ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, instalada este mês pela presidenta Dilma Rousseff.
Confira a seguir a entrevista.
Como o senhor avalia as possibilidades da Comissão Nacional da Verdade?
A Comissão da Verdade criada pelo governo federal tem um âmbito de atribuições muito amplo, de modo que não caberia simplesmente reunir informações e solicitações em Brasília. Aliás, a Comissão da Verdade nacional só funcionará bem se ela puder contar com o apoio de outras comissões da verdade nos planos estadual e municipal – ou, então, setorial, como é o caso da comissão da verdade da Universidade de São Paulo, que se propõe agora.
Como a comissão na USP deverá trabalhar?
Ela deverá trabalhar com total independência. Os professores, estudantes e funcionários da Universidade de São Paulo devem abrir o passado e verificar tudo aquilo que ocorreu durante o período empresarial militar. É preciso que todos nós, brasileiros, enxerguemos o passado criminoso que nós tivemos em vários períodos de nossa história, como, por exemplo, a escravidão. É preciso que nós saibamos enfrentar essa verdade difícil, que é a verdade do desrespeito sistemático à dignidade da pessoa humana. Quero mais uma vez repetir aquele pensamento de um grande pensador norte-americano: “Aqueles que se recusam a relembrar o passado estão condenados a repeti-lo”.
Quais pontos o senhor destaca que ainda o senhor vê como resquício da ditadura e no que a comissão poderia contribuir para a própria reformulação da gestão da USP?
Um resquício do regime empresarial militar foi indicado no próprio manifesto de criação da Comissão da Verdade na USP. O regime disciplinar da universidade, que continua em vigor, foi estabelecido em 1972. Para os jovens, isso não significa nada; para nós, que vivemos aquele período, significa o período mais sangrento do regime empresarial militar. Era o governo do presidente Garrastazu Médici.
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