Tuna Dwek: ‘Tem muita gente que está morta há muito tempo, porque foi calada pela ditadura’

“Saí daqui com medo de abrir a boca e voltei tendo que saber o que me aguardava”, Dwek (Fotoarena/Folhapress) São Paulo – Atriz, tradutora e intérprete, Tuna Dwek, de 54 […]

“Saí daqui com medo de abrir a boca e voltei tendo que saber o que me aguardava”, Dwek (Fotoarena/Folhapress)

São Paulo – Atriz, tradutora e intérprete, Tuna Dwek, de 54 anos, é formada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e pela Escola de Arte Dramática, da Universidade de São Paulo (EAD). Após estudar numa escola francesa, ela entrou para o grupo de teatro amador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), mas, em 1977, uma semana antes de estrear no espetáculo “Juan Palmieri”, de Antonio Larreta, vencedor do prêmio Casa de las Americas, em Cuba, foi presa e torturada, sendo exilada em seguida.

“Eu fui embora e fiquei muito traumatizada. Voltei com a anistia, no final de 1979. Era preciso voltar direito para este país. Tive de reconhecer onde eu estava pisando e o país, antes de fazer a minha vida no teatro. Não sabia se queria mesmo. Saí daqui com medo de abrir a boca e voltei tendo que saber o que me aguardava. Será que eu podia mesmo abrir a minha boca? Eu não conhecia mais as pessoas. Sorte minha que tive coragem de voltar, com força minha. Mas muita gente não conseguiu.”

Para Tuna Dwek, os danos para a cultura brasileira foram imensos. “O Chico (Buarque) tinha canções que foram liberadas, porque falavam numa linguagem metafórica. A Lygia Fagundes Telles conta que o livro As Meninas passou na censura, porque o censor dormiu ao lê-lo. Achou tedioso e liberou. Foram descuidos, digamos assim. Teve Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), (Gianfrancesco) Guarnieri, Paulo Pontes e toda uma geração que continuou criando. Mas também houve um empobrecimento. A gente nunca vai saber quantos projetos foram abortados. Cada peça que era encenada tinha de passar pela censura. Eles retalhavam. Você quer uma coisa mais cruel? Não só censuravam, como as coisas que eles liberavam, era com cortes. Só liberavam obras mutiladas. Isso também é violência”, diz.

De volta ao teatro, Tuna foi dirigida por nomes consagrados como Fernando Kinas, Jorge Takla, Odavias Petti e Ruy Cortez, entre outros. Também atuou no cinema e na televisão, em produções como “Um Só Coração”, “Da Cor do Pecado”, “JK”, “Queridos Amigos” e “Ti Ti Ti”, entre outras. Em 2010, ela integrou o elenco da adaptação teatral do romance As Meninas, com direção de Yara de Novaes.

 

Tuna Dwek solicitou que seu depoimento fosse acompanhado pela canção “Maninha”, de Chico Buarque. Assista o vídeo.:

Leia a seguir a entrevista completa com Tuna Dwek.

Como e onde você encontra reflexos do regime militar no Brasil atual? Conseguimos nos livrar dos fantasmas daquele período?

Os efeitos são irreversíveis, pois tem lacunas que nunca mais serão preenchidas. Não só porque as pessoas já morreram assassinadas pela tortura, se mataram no exílio ou desistiram de tudo, mas também por produzir outros efeitos devastadores nas pessoas, como a depressão. Muita gente desistiu e acha que não consegue mais criar nada. Tem uma parte de uma geração que nunca mais quis criar, por não se sentir capaz. Há atores que eram ótimos e sumiram. Eles não querem mais. Então os efeitos não são só os que vemos a olho nu. São os que não vemos de toda uma parte da população que desistiu, que não acredita mais em si mesma e nem em nada que possa transformar. Ainda acho, na minha utopia, que a arte é transformadora, assim como a reflexão que gera uma ação. Por exemplo, num espetáculo de teatro, se eu tocar algumas pessoas da plateia e fizer com que elas cheguem em casa e comecem a refletir, para mim, é um passo e uma conquista. É algo contínuo e permanente. A ditadura acabou formalmente, mas os efeitos dela continuam dentro da gente. Eu não vejo nada, nunca, de positivo dos anos de chumbo no Brasil. Nada. Teve, por exemplo, a pornochanchada, um cinema de resistência. É porque fizeram naquele momento algo, digamos, de positivo. Não pararam.

Não há nada de positivo nos efeitos da ditadura. Eu percebo que ainda tem muita gente reacionária e que não sabe o que aconteceu aqui. É como uma lavagem cerebral. Foi apagado dos livros e das conversas. Agora tem o resgate em cinema, teatro e literatura, de desenterrar esse período, e tem toda uma campanha para que se abram os arquivos da ditadura. É surpreendente ter uma presidente, que foi presa e torturada, tão pouco ativa. Ela deveria tomar a iniciativa de abrir os arquivos da ditadura. Então nas artes e na cultura, tem várias lacunas que nunca mais serão preenchidas. Tem muita gente que está morta há muito tempo, porque foi calada pela ditadura. Imagine quantas peças poderiam ter sido escritas e encenadas, livros publicados e filmes realizados. 

Você acredita que teve muita coisa abortada em função do regime militar?

Teve muita coisa abortada. No teatro, não tinha meios materiais para fazer, e o medo. Teve gente que conseguiu criar no medo e gente que não. Tem gente que foi calada antes pela morte e pela tortura. Há uma parte que foi silenciada, que não só não volta mais, como tem lacunas mesmo que nunca mais serão preenchidas. A gente vê muita falta de perspectivas nas pessoas. É resultado de tudo o que vivemos na ditadura, que se gaba de ter industrializado o país. Onde? A que preço? Que milagre? A gente viveu uma ficção. A parte cultural e artística depende da criação, que, por sua vez, depende de uma energia e o espaço que você tem para criar. Se ele é tirado de você, não consegue criar nada. O Chico tinha canções que foram liberadas, porque falava numa linguagem metafórica. A Lygia Fagundes Telles conta que o livro “As Meninas” passou na censura, porque o censor dormiu ao lê-lo. Achou tedioso e liberou. Foram descuidos, digamos assim. Teve Vianinha, Guarnieri, Paulo Pontes e toda uma geração que continuou criando. Mas também houve um empobrecimento. Não acho que nenhum gênero teatral seja mais pobre ou rico, enfim. Só que digamos que durante anos ninguém podia colocar o dedo na ferida e falar publicamente do que estava acontecendo. Em 1970, teve a Copa do Mundo, que é muito emblemática. Enquanto as pessoas estavam sendo torturadas durante a ditadura, outras comemoravam na rua a vitória do Brasil. O que a gente vê hoje é uma proliferação de grupos de teatro, mas quantos deles estão botando mesmo o dedo na ferida? Tem uma geração que tenta resgatar um pouco o que aconteceu. Mas não pode ficar na coisa só vitimista. Temos de transmutar isso e transformar também numa obra de arte.

Como você passou pelo regime militar?

Eu cresci durante a ditadura. Nasci em 1957 e lembro do (então presidente e marechal) Castelo Branco, no carro, andando pela Paulista. Eu estava na escola francesa. Então de alguma maneira vivia numa bolha, mas, ao mesmo tempo, ela despertou todo um espírito libertário que eu já tinha. Você ficar estudando os filósofos franceses e toda uma estrutura de uma escola que não obedece aos padrões brasileiros, digamos assim, te possibilita a ter até uma reflexão mais aprofundada. Quando eu saí e entrei direto nas Ciências Sociais, na PUC-SP, logo comecei a militar no movimento estudantil. Eu não era dirigente de nada. Mas ia a todas as assembleias e passava nas salas de aula. Era um prolongamento meu combater a ditadura e lutar por liberdades democráticas. Não se questionava não fazer isso.

Aí fui para um grupo do teatro amador da GV (Fundação Getúlio Vargas). E uma semana antes de estrear a peça “Juan Palmieri”, do Antonio Larreta, que tinha ganho o prêmio Casa de Las Americas, em Cuba, e era a história de um tupamaro que foi assassinado, eu fui presa. Aquilo foi uma derrocada para mim. Eu fui embora e fiquei muito traumatizada, porque fiquei 11 dias presa. Só fui fazer teatro mesmo quando eu entrei na EAD (Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo), em 1985. Isso aconteceu em 1977 e eu só voltei a fazer teatro em 1987. Sorte minha que eu tive coragem de voltar. Com força minha. Mas muita gente não conseguiu.

A gente nunca vai saber quantos projetos foram abortados. Cada peça que era encenada tinha de passar pela censura. Eles retalhavam. Você quer uma coisa mais cruel? Não só censuravam, como as coisas que eles liberavam, era com cortes. Só liberavam obras mutiladas. Isso também é violência. Eles eram paranóicos e tudo era subversivo. Você estar num grupo, numa esquina, conversando, parecia que haveria uma conspiração. Tudo era visto com maus olhos. Da mesma maneira, muitos militares eram contra. A gente punha todo mundo no mesmo saco, mas não eram todos a favor. Tinha gente que continuava nas Forças Armadas e não compactuava.

Agora a cultura não só empobreceu, como levou muito tempo para ficar em pé de novo. Ela nunca estará como poderia ter ficado. Hoje temos um paradoxo. Vivemos uma democracia, mas a ditadura dos produtores e de outra ideologia. A gente tem grana para fazer? E credibilidade para montar o que a gente quer? O teatro engajado como era, mais político, e de reflexão, tem lugar? Tem lugar quando pega cooperativas. Agora o dinheiro das grandes produções está voltado a outro tipo de peças, que não as dos anos 70. Com a ditadura, se formou outro tipo de produção e de público. Nós tivemos de reconquistar um parte do público e fazer de modo com que as pessoas se interessem pelo que a gente quer dizer.

Você ficou vários anos sem querer saber de teatro?

Voltei com a Anistia no final de 1979. Era preciso voltar direito para este país. Tive de reconhecer onde eu estava pisando e o país, antes de fazer a minha vida no teatro. Eu não sabia se queria mesmo. Sai daqui com medo de abrir a boca e voltei tendo de saber o que me aguardava aqui. Será que eu podia mesmo abrir a minha boca? Eu não conhecia mais as pessoas. 

Havia uma autocensura muito grande em função do regime militar?

É claro, porque você tem medo de tudo. É uma coisa contraditória, porque, ao mesmo tempo em que obriga você a se autocensurar, não pode ser tão rígido e te deixa mais forte para enfrentar o medo. Você tem a autocensura, a censura que vem de fora, o medo e uma reação de coragem às vezes, destemida, que vem de uma ideologia, de uma construção de que pode derrubar isso. Não é todo mundo que se autocensura, porque senão ficaria todo mundo quieto. Não. Há quem vai lá, fala, reage e arrisca. Teve gente que se arriscou muito. O medo te paralisa ou você o enfrenta, com os riscos.

Como você recebeu a notícia dessas comemorações dos militares?

Com perplexidade, revolta, raiva, tristeza. Nada me surpreende por parte das pessoas reacionárias, mas senti um pouco de surpresa, porque a gente acha que eles estão quietinhos, mas ainda tem muita gente que compactua, como no Chile, onde vi que ainda tem gente de direita e com saudade do (general Augusto) Pinochet. Eu fico estarrecida. Mas de alguma maneira isso chacoalha a gente para nunca se acomodar e achar que só tem ganhos. Existem riscos. Só que acho que é muito difícil virar a ideologia dominante de novo. Mas você acha que eles teriam até vergonha de se manifestar. Não é assim. É algo que me dá raiva. Nunca tive vontade de perdoar ninguém e não será agora que perdoarei. Eu acho que torturador não merece perdão nunca. Eu achei que um dia eles iriam pagar. Achei que, quando o Lula virasse presidente, ele fosse começar a fazer pagar. Só que eu vejo que tem outros interesses. Eu achei que a Dilma fosse abrir os arquivos todos e começaria a ter julgamentos, acusações, matérias, o nome das pessoas. Sumiram com muita coisa e agora tem a campanha para abrir os arquivos da ditadura.

Será que vivi uma ilusão tão grande assim? Essas pessoas vão ficar sem punição? Vai ficar por isso mesmo? Tem famílias com várias pessoas que foram presas, torturadas e mortas. Não uma só. O Brasil inteiro. Tem uma entidade de filhos de desaparecidos que a (cineasta) Marta Nehring, filha de um casal de desaparecidos, criou. Eu achei que um dia teria punição. O torturador sai de uma sala de tortura e vai fazer carinho no filhinho dele em casa. O que é isso? E fica por isso mesmo? Fica essa impunidade? E isso você carrega a vida inteira. Eu não sou refém da minha dor e da minha história. Eu consegui reconstruir a minha vida, a minha cabeça, o meu emocional. E ser atuante no que eu faço. Mas quantas pessoas? Ficam sequelas. Cada artista leva anos para depois querer falar, fazer uma peça e escrever um texto de novo. Então a ditadura teve esse efeito a longo prazo. A pessoa foi pega, tortura, solta e acabou. E o resto da vida, como é que fica? Eu adoro o cinema da Lúcia Murat, porque ela consegue, sem vitimismos e sem autopiedade, mexer em todas as feridas dela, que foi presa e torturada. Mas buscando justiça e mostrando para as pessoas o que aconteceu. O cinema dela é todo voltado para isso e é importantíssimo. Eu adoraria trabalhar com ela, até em conhecimento de causa, digamos assim.

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