Na USP, cinco décadas após o golpe, a ditadura volta a dar as caras

Respaldado por um estatuto que completa 40 anos, o reitor João Grandino Rodas administra a mais importante universidade brasileira de maneira autoritária e truculenta

Estudantes se manifestam contra sinais de retomada da ditadura na USP (Foto: Thiago Moura)

São Paulo – A criação da superintendência de segurança, com contratação de militar reformado para ocupar o cargo, é a mais recente medida do reitor João Grandino Rodas para intensificar a repressão à comunidade da Universidade de São Paulo (USP). A opinião é de Jéssica Trinca, que juntamente com outros sete estudantes foi expulsa da universidade em dezembro passado sob acusação de ter participado da ocupação das dependências da Coordenadoria de Assistência Social.

“A universidade não é violenta. A militarização traz em sua essência a intensificação do controle e da repressão à ação política de estudantes, trabalhadores e professores”, diz Jéssica, que era aluna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e moradora do Conjunto Residencial da USP (Crusp). 

Para a estudante, que teve negada a liminar para reintegração à universidade, o órgão cuja criação foi anunciada ontem (29) terá como alvo a comunidade São Remo, o próprio Crusp e outros espaços que abriguem manifestações políticas. “Soubemos por fonte segura que os doze estudantes presos em fevereiro passado durante reintegração de posse de parte do bloco G (do Crusp) também serão expulsos”, diz.

Conforme a reitoria, cidadania, qualidade de vida, participação e compartilhamento são as palavras que nortearão o trabalho dessa nova superintendência. A gestão será de Luiz de Castro Junior, que foi diretor de Polícia Comunitária e de Direitos Humanos da Polícia Militar de São Paulo, atualmente reformado. Ainda segundo a nota, a superintendência ocupa, a partir de agora, uma lacuna que existia na estrutura administrativa da instituição, atuando como órgão central da Universidade.

Os trabalhadores da USP já estão se mobilizando contra a medida. Contataram outras entidades, intelectuais, juristas e outras personalidades ligadas à universidade para, juntos, expressarem a indignação contra o novo órgão e a contratação sem concurso público dos militares interventores.

A criação do novo órgão por Rodas ocorre em meio a uma série de eventos que, segundo estudantes, professores e trabalhadores, nada apontam para a cidadania, qualidade de vida, participação e compartilhamento na universidade. Ao contrário, as perseguições e os desmandos mostram que ali a ditadura ainda não acabou.

Há mais de duas semanas está na internet um manifesto que repudia práticas de intimidação adotadas pelo gestor da reitoria contra a direção da Adusp (Associação de Docentes da USP). Os dirigentes estão sendo interpelados judicialmente por declarações que teriam dado ao jornal O Estado de S. Paulo sobre a maneira como a atual administração emprega as verbas da instituição. Na tarde de ontem, quando esta reportagem foi concluída, 713 estudantes, professores e intelectuais de diversas partes do país haviam assinado o manifesto.

“Rodas está tentando – mas não vai conseguir – intimidar e calar os professores que defendem mais verbas para a educação e menos para prédios”, diz Francisco Miraglia, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP e diretor do Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior).

Ele lembra que a presença da Polícia Militar no campus e as perseguições são respaldadas por um código disciplinar elaborado há 40 anos, em plena ditadura, que é hoje o mais atrasado do país. O estatuto, aliás, é que rege o processo eleitoral para reitor, a escolha dos diretores das unidades e a composição do Conselho Universitário (CO).

“Instância mais importante dentro da universidade, o Conselho Universitário na USP é pautado pela reitoria, não tem transparência, está livre do controle social e é controlado por uma oligarquia que manda na instituição há muitos anos”, diz Miraglia. Essas razões, seguindo ele, explicam seu desânimo em relação à reforma estatutária. Durante a gestão de José Goldemberg (1986 a 1990), o estatuto chegou a passar por modificações superficiais, que mantiveram seu caráter autoritário. 

Na USP, segundo Miraglia, quase metade do conselho é formado por diretores das unidades, que são escolhidos pelo reitor. Há ainda representantes das congregações – a maioria delas compostas por professores titulares, que têm muitos privilégios – e uma parcela pequena de estudantes e funcionários. Essa constituição contraria determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que prevê a presença de 70% de professores nos colegiados, 15% de trabalhadores e 15% de alunos.

São esses representantes que escolhem os três nomes da lista encaminhada ao governador do estado, que escolhe o reitor. Esse processo indireto fere a autonomia universitária de escolher seu gestor e permite o uso político-ideológico do cargo. Rodas, por exemplo, não foi o primeiro da lista, mas foi escolhido pelo então governador José Serra (PSDB) em 2009.

“O atual reitor é o braço da política elitista e privatista do governo tucano dentro da universidade. Quando diretor da Faculdade de Direito, ele chamou a tropa de choque para prender militantes do movimento social que fizeram uma ocupação simbólica da faculdade, reivindicando a adoção de cotas para alunos negros e oriundos do ensino público”, diz Aníbal Cavali, diretor do Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP). “A truculência o credenciou junto ao governador para ocupar o cargo na reitoria”.

Por essas e outras é que Francisco Miraglia diz que será preciso muita paciência e mobilização. “A história mostra que somente grandes pressões foram capazes de promover mudanças profundas, como na Rússia, em Cuba, na França. E não vislumbro isso em curto prazo numa universidade em que os professores não podem se manifestar, não podem se organizar e são submetidos a uma sobrecarga de trabalho e a uma intensa produção em detrimento da qualidade”.

Leia também

Últimas notícias