Ministério Público vai investigar ação policial na ‘cracolândia’, em São Paulo

Promotores classificam operação como “precipitada e desorganizada”, não descartam ligação com ano eleitoral e acreditam que Polícia Militar boicota trabalho de agentes de saúde

Eduardo Valério considera que a operação policial só faz agravar o problema, dado que tem espelhado os dependentes químicos por várias áreas da cidade (Foto: Marcello Casal Junior/ Arquivo Agência Brasil)

São Paulo – O Ministério Público Estadual anunciou nesta terça-feira (10) a abertura de inquérito para apurar a responsabilidade sobre a ação policial deflagrada na semana anterior na região da Luz, no centro de São Paulo, conhecida como cracolândia. Os promotores querem saber de onde partiu a ordem para a operação repressiva, como ela foi articulada e se houve aplicação de recursos desproporcional aos resultados obtidos.

“É uma operação precipitada e desarticulada”, afirmou Eduardo Valério, promotor de Direitos Humanos na área de Inclusão Social, em conversa com jornalistas. Até agora não ficou claro se a ordem para o começo da repressão veio do governador Geraldo Alckmin, do prefeito Gilberto Kassab, da Secretaria de Segurança Pública paulista ou diretamente da Polícia Militar.

Valério e os colegas das promotorias de Direitos Humanos na área de Saúde Pública, de Habitação e Urbanismo e da Infância e da Juventude não descartam mover ação de improbidade administrativa contra os comandantes da operação, que, consideram, apresentou balanços pífios se comparada aos recursos humanos e materiais mobilizados desde o último dia 3. Segundo o último boletim disponível, atualizado nesta terça-feira (10), foram apreendidos 447 gramas de crack e presas 23 pessoas em 2.220 abordagens policiais. De 788 abordagens de saúde, 28 resultaram em internações e 33 em encaminhamentos aos serviços públicos.

Valério considera que a operação policial só faz agravar o problema, dado que tem espalhado os dependentes químicos por várias áreas da cidade, dificultando o trabalho realizado ao longo do tempo por agentes de saúde e de assistência social. “A polícia boicotou o trabalho que vinha sendo tentado por agentes sociais”, argumenta, fazendo referência ao elo de confiança que se estabelece entre os representantes do poder público e os usuários de drogas. O Ministério Público acredita que a operação coloca “de ponta-cabeça” a ordem do trabalho que deveria ser realizado. Eles pensam que o primeiro trabalho é garantir um atendimento social e de saúde para todos os dependentes, para entrar apenas em último caso com o trabalho policial, e somente no que diz respeito aos traficantes.

Os promotores estranham também o momento em que é desencadeada a operação. Eles não enxergam fato novo que justifique a intervenção e lembram que dentro de poucas semanas estará inaugurado pela prefeitura o Complexo Prates, que terá capacidade de atender uma quantidade muito maior de dependentes químicos. Questionado a respeito, Valério não descarta a conexão entre o ano eleitoral e os resultados do trabalho na Luz. “É possível. Afinal, estamos em um momento político importante, mas não é possível afirmar isso com certeza.”

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, da Promotoria de Habitação e Urbanismo, considera que houve precipitação na ação policial. “O que percebemos é que o jogo começou e não estavam todos em campo ainda. Colocou o time inteiro nas mãos do adversário. O jogo agora começa perdido.”

Ele evita fazer uma conexão direta entre a repressão e a tentativa de deixar “limpa” a região, que o prefeito Gilberto Kassab deseja chamar de Nova Luz. O principal projeto do segundo mandato é a transformação urbana da área central da cidade, alvo de críticas de comerciantes e moradores locais e de especialistas, que entendem que a finalidade é abrir uma frente de lucro para as construtoras com a criação de uma área bem equipada pronta para novos investimentos. Lopes argumenta que a liminar obtida recentemente proibindo a administração Kassab de promover o licenciamento da região para o setor privado diminui, ao menos em tese, a pressa pela expulsão dos dependentes.

Uma reunião agendada para a sexta-feira (13) entre representantes dos governos estadual e municipal e o Ministério Público dará o pontapé inicial nas investigações. Espera-se contar com a presença de Alda Marco Antonio, secretária municipal de Assistência Social e vice-prefeita, Ricardo Pereira Leite, secretário de Habitação, e Elizabete França, superintendente municipal de Habitação Popular, além de representantes do governador Alckmin.

O promotor Eduardo Valério critica a declaração do comando da Polícia Militar de que a operação seria guiada à base de “dor e sofrimento” e indica que o princípio da igualdade entre os cidadãos é quebrado a partir do momento que uma intervenção reprime indiscriminadamente usuários, uma questão de saúde, e traficantes, uma questão policial. “Estas pessoas já sofreram o suficiente pela vida e pela droga. Não é necessário que o Estado lhes imponha uma dose adicional de dor e de sofrimento.”

Saúde sem repressão

Arthur Pinto Filho, da Promotoria de Direitos Humanos na área de Saúde Pública, critica a desarticulação entre as esferas do poder público. Para ele, a prova da falta de uma organização mínima da operação é a indicação para que os dependentes químicos fossem encaminhados à unidade de Assistência Médica Ambulatorial (AMA) da Boraceia, no centro, que funciona durante apenas doze horas ao dia e, pior, não presta atendimento a esta especialidade. Além disso, a maior parte das duzentas vagas para internação de adictos na cidade já está preenchida, sendo impossível atender ao contingente existente na área da cracolândia, um problema que seria amenizado a partir de fevereiro com a abertura do Complexo Prates.

O promotor lamenta também a ênfase dada pelos governos estadual e municipal à internação compulsória, neste caso com autorização do Judiciário. “A internação compulsória é possível em condições especialíssimas. Não se pode imaginar a internação compulsória como política pública para resolver a questão do crack”, diz Pinto Filho, acrescentando que seria preciso promover uma avaliação rigorosa de cada caso antes de adotar este expediente.

Uma outra questão envolvida na investigação é o tratamento dispensado pelos agentes públicos a crianças e adolescentes. A ideia é saber, de um lado, sobre a responsabilidade do tratamento igual aplicado a adultos e a menores de idade, violando o Estatuto da Criança e do Adolescente, e, de outro, sobre a falta de um encaminhamento dos filhos de detidos para abrigos e familiares. “Uma das medidas que estamos tomando é justamente expedir ofício para a Secretaria Municipal de Assistência Social para que nos identifique essas crianças”, diz a promotora Luciana Bérgamo, que lembra que o tratamento de dependência química sem o contato com a família pode se tornar inócuo.

Após apurar as responsabilidades, os promotores querem promover uma integração das políticas públicas dos governos federal, estadual e municipal. Eles se queixam que atualmente cada um age de uma maneira, inclusive dentro da mesma esfera administrativa, colocando a perder os trabalhos bem sucedidos.

Sufoco

A investida policial contra usuários de drogas na região da Luz foi criticada por grupos que trabalham com dependentes químicos, que defendem uma abordagem de saúde para a questão. Os ativistas consideram um equívoco a postura ofensiva desencadeada na primeira semana do ano por Alckmin e Kassab.

A Polícia Militar argumenta que precisa usar táticas agressivas para “quebrar” o abastecimento da cracolândia. As ações dos últimos dias incluíram uso de disparos de balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes. A corporação fala em uma estratégia de “dor e sofrimento” para mudar a região, que responde pelo principal plano urbanístico da gestão Kassab, o Nova Luz, que promete poder transformar a região com a concessão a empresas privadas do setor de construção de prerrogativas de desapropriações e outras intervenções.

Em entrevista coletiva concedida nesta semana, os comandantes da ação da prefeitura e do governo estadual indicaram que, dentro de um mês, começam a ser abertos os centros de assistência social no bairro. Em  60 dias, os de saúde passarão a funcionar, ainda segundo as fontes oficiais.

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