Não cumprir sentença sobre ditadura pode atrapalhar ação internacional do Brasil

País fica exposto a constrangimentos que colocam em risco negociação por assento permanente no Conselho de Segurança da ONU

São Paulo – Permanecer em dívida com a Corte Interamericana de Direitos Humanos pode levar o Brasil a constrangimentos internacionais que acabem por afetar a inserção no cenário global, maior especialmente após o governo Lula. Em última instância, ser excluído da tão sonhada reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

 Setores do Judiciário brasileiro têm defendido que a condenação brasileira por não investigar, esclarecer e punir os crimes da ditadura, proferida há um ano, não produz efeitos no âmbito interno. Embora a Corte Interamericana, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), não tenha o poder nem a intenção de uma intervenção direta no Brasil, a pendência em um sistema internacional aceito de espontânea vontade pelo país tem o poder de afetar a atuação no exterior.

“O Brasil seria colocado em uma situação de Estado-pária no cenário internacional. O não cumprimento significaria mais um ilícito internacional”, diz Flávia Piovesan, professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional da PUC de São Paulo, que acredita, porém, que lentamente o país tem dado passos no sentido de cumprir a sentença. Ela destaca como pontos positivos a sanção, pelo governo Dilma, da Lei de Acesso à Informação Pública e da criação da Comissão Nacional da Verdade, além dos debates em curso no Ministério Público Federal sobre o caminho para punir integrantes da ditadura (1964-85), uma das exigências da OEA.

O Brasil ratificou em 2002 a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que significa que aceita as sentenças da Corte Interamericana, sejam quais forem. A cada ano, a entidade apresenta na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos os relatórios sobre o cumprimento das sentenças, dentre os quais constará o Estado brasileiro, em pendência.

A condenação prevê que o Brasil apresente um relatório após um ano de conhecida a decisão, em 14 de dezembro. Depois disso, será dado um prazo para que as entidades que apresentaram o caso à OEA se posicionem. O Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos já avisaram que não têm boas coisas a dizer. Elas se queixam que o Executivo, em especial, não chamou os peticionários para conversar sobre o cumprimento dos 12 pontos apresentados pela Corte. “Teremos grande prazer em mostrar que, apesar do discurso muito lindo na questão dos direitos humanos, o Estado brasileiro tem uma prática diferente”, afirma Beatriz Affonso, diretora do Cejil.

O Brasil já foi condenado em outros três casos pela Corte Interamericana. A dificuldade na sentença sobre a ditadura é o envolvimento direto das Forças Armadas. Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria de Direitos Humanos no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, lembra que, como a punição era dada como certa, tentou trabalhar dentro do governo para adiantar-se à execução das questões que seguramente seriam exigidas pela OEA, mas acabou derrotado na “correlação interna de forças”, na qual se alinhava ao Ministério da Justiça, mas sofria a oposição da Defesa, então comandada por Nelson Jobim. “Estou entre quem apoia, na condição de quem não tem nenhum interesse de litigância com o governo Dilma, usar toda a capacidade de argumentação no sentido de levar o Brasil a cumprir as determinações da OEA.”

Além das questões diretamente relacionadas à política regional, o Brasil pode sofrer problemas no cenário global. O débito em uma questão de direitos humanos poderá ser lembrado por uma nação que queira impedir ou atrapalhar o objetivo brasileiro de obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. “Se o Brasil, por hipótese, insistir nessa estratégia burra haverá ônus”, complementa Vannuchi.

Além da questão específica da sentença sobre a ditadura, em que foram cumpridos dois dos 12 pontos previstos pela Corte Interamericana, o balanço do ano não foi dos mais pacíficos para as relações do Brasil com a OEA. O governo Dilma Rousseff subiu o tom quando a Comissão Interamericana recomendou a paralisação das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte para que fossem consultados os povos afetados e analisados os efeitos da construção. Suspendeu a indicação de Vannuchi para integrar a entidade a partir de 2012 e chegou a cortar verbas. Em outubro, decidiu não enviar representante à audiência sobre a usina, mas, semanas depois, ensaiou fazer um mea culpa. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, admitiu a necessidade de retomar o diálogo. “Estamos fazendo uma reaproximação com a OEA depois daquele incidente ocorrido.”

Flávia Piovesan considerou preocupante a postura do Executivo e disse que o comportamento se assemelha ao da Venezuela, que tem um histórico de desrespeitar a OEA e, por isso, ganhou uma posição periférica na geopolítica das instituições supranacionais. “Lamento que uma insatisfação, um desconforto da presidenta em relação às medidas cautelares possa ter se convertido em um ataque ao sistema interamericano.” A professora da PUC e colaboradora da Comissão Interamericana lembra que foram desrespeitadas entidades fundamentais para a transição democrática na região. “O Brasil, que pretende se tornar um global player, fortalecendo o diálogo Sul-Sul, com reconhecimento em instâncias internacionais, há de valorar a democracia.”

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