Postura do Brasil sobre Belo Monte coloca OEA em crise

Flávia Piovesan, colaboradora da entidade regional, considera que governos das Américas ainda veem respeito aos direitos humanos como enfrentamento aos Estados

Segundo a procuradora Flávia Piovesan, considera que a dificuldade em fazer avançar a implementação das determinações dos direitos humanos tem a ver com reminiscências dos períodos ditatoriais (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

São Paulo – As recentes decisões da Venezuela e do Brasil de ignorarem decisões, recomendações e pedidos feitos pelo sistema interamericano de direitos humanos colocam em situação complicada a Organização dos Estados Americanos (OEA). Flávia Piovesan, procuradora do Estado de São Paulo e integrante de grupos de acompanhamento das medidas da organização regional, lamenta especialmente a postura brasileira em relação ao caso da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. “A OEA está em crise”, constata.

Em outubro, o governo de Dilma Rousseff decidiu não enviar representante à audiência organizada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para debater a questão. O comportamento foi criticado por entidades que tentam garantir o respeito aos povos indígenas e ribeirinhos afetados pela construção, e que não têm encontrado no Judiciário brasileiro o respaldo ou a celeridade que esperavam para o caso. 

Antes disso, ministros de Estado reagiram indignados ao pedido da CIDH para que as obras em Altamira fossem paralisadas antes que se comprovassem as hipóteses de potenciais perdas de direitos do povo brasileiro. Nelson Jobim, então titular da Defesa, afirmou que a OEA deveria “cuidar de outros casos”, e o Itamaraty divulgou nota considerando as medidas cautelares “precipitadas e injustificáveis”. Na ocasião, Dilma decidiu cancelar a indicação de Paulo Vannuchi, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos, para representar o Brasil na comissão, e suspendeu os repasses de verbas. 

Flávia Piovesan considera que a dificuldade em fazer avançar a implementação das determinações do sistema regional de direitos humanos tem a ver com reminiscências dos períodos ditatoriais e de uma cultura autoritária. “Isso reflete a fragilidade da proteção de direitos humanos dentro dos Estados. Porque por décadas a agenda de direitos humanos foi contra os Estados”, adverte, ao lembrar o cenário paradoxal em que entrou em vigor a Convenção Americana de Direitos Humanos, na década de 1970, quando mais da metade dos países do continente não tinha governos eleitos democraticamente.

Também em outubro, a Suprema Corte da Venezuela decidiu que era inválida a decisão da Corte Interamericana que restituía os direitos políticos a Leopoldo López, político de oposição ao governo atual. Ao mesmo tempo, a gestão de Hugo Chávez prometeu apresentar queixa ao sistema interamericano no âmbito da OEA.

Emil José Niño Rodriguez, advogado do Observatório Venezuelano de Prisões, deu outros exemplos de determinações regionais para as quais sua nação não deu resposta. Entre 2006 e 2011, a Corte emitiu seis pacotes de medidas na tentativa de melhorar a situação das unidades de reclusão do país. “Nunca tivemos a devida colaboração do Estado venezuelano. Cansamos de enviar solicitações para que implementem soluções. Para fazer o acompanhamento, temos de entrar nas cadeias. Nos submetemos à revista, não podemos nos identificar como defensores de direitos humanos”, queixou-se. 

Segundo o Observatório Venezuelano de Prisões, entre 2001 e 2005, 1.604 detentos perderam a vida no sistema carcerário e 5.585 ficaram feridos. De 2006 a 2010, o número de mortes subiu a 2.174, e foram registrados 4.461 casos de ferimentos. O quadro narrado por Rodriguez não difere muito da realidade de algumas das prisões brasileiras: falta de separação por tipo de delito, ausência de atividades ressocializantes, más condições de higiene e pessoas detidas sem acusação formal. “Obviamente ocorre, como rotina, o ensinamento de mecanismos para esta convivência, e como graduação o assassinar as pessoas dentro da cadeia. Obrigam a matar para poder formar parte de um grupo e proteger a própria vida.”

Históricos diferentes

Durante colóquio promovido pela organização Conectas na capital paulista, a professora Flávia Piovesan fez uma comparação com o sistema europeu de direitos humanos. Ela apresentou dados de um estudo que mostra que as determinações da Corte Europeia têm um cumprimento de 90%. “A tríade indissociável que move o sistema europeu é Estado de direito, direitos humanos e democracia, coisa que não se move aqui desde os primórdios.” 

No caso da Corte Interamericana, embora o pagamento de indenizações tenha um nível relativamente elevado, de 70%, a implementação das sentenças em geral é de apenas 29% – 12% têm implementação parcial e 59% são deixadas de lado. Em uma análise qualitativa, decisões que mexem com a punição a repressores do passado e que exigem uma mudança no marco judicial nacional são as que enfrentam maiores dificuldades. 

É o caso do Brasil, condenado há menos de um ano devido ao episódio da ditadura conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Organizações que acompanham o cumprimento da sentença reclamam do ritmo lento do Estado em dar resposta às determinações. Em um dos pontos cruciais, a revogação da Lei de Anistia, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) avaliam que a decisão interna, de manter a proteção aos repressores, sobrepõe-se à jurisprudência internacional. Em dezembro, o país terá de apresentar um relatório contando aquilo que colocou em prática. 

“Qual é o drama? A Corte Interamericana sofre de profunda solidão. São sete juízes que condenam, são eles que agendam as comissões de acompanhamento”, aponta a procuradora, que considera que seria preciso que a OEA fosse diretamente responsável pelo cumprimento dessas decisões, o que daria um respaldo muito maior ao trabalho do sistema regional de Justiça. Reformar o sistema para impor sanções duras aos Estados que descumprem medidas da Corte, avalia, está fora de cogitação neste momento porque, com o contexto de desrespeito, qualquer discussão de mudança acabaria por desembocar em um retrocesso.

“É impressionante a dificuldade de mover a agenda de direitos humanos quanto aos Estados”, lamenta. Ela contou o caso do grupo em que trabalha na OEA, que faz o acompanhamento da implementação de um dos protocolos regionais, e que não conta com verbas suficientes para desenvolver um bom trabalho. “O primeiro mandato, que pensei que fosse elaborar um documento com as bases para o funcionamento, está captando fundos.”

Novamente, ela apresentou dados para comparação. Enquanto o sistema interamericano de direitos humanos recebe 5% do orçamento anual da OEA, o equivalente a R$ 7 milhões, a Corte Europeia tem 25% do orçamento para o Judiciário europeu, ou quase R$ 100 milhões.”Estou convicta de que os êxitos do sistema interamericano se devem a nós, da sociedade civil. Sem isso, não esperemos que os Estados tenham comprometimento com os direitos humanos.”

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