Transgênicos e parcerias com empresas colocam em debate o papel da Embrapa

Pesquisadores da própria empresa e estudiosos criticam associação com corporações transnacionais de sementes e desenvolvimento de feijão geneticamente modificado

Transgênicos prejudicam o agricultor familiar, que paga cada vez mais caro nos grãos de cultivo (Foto: © Juca Varella/Folhapress)

São Paulo – Parcerias com as maiores corporações agronômicas do mundo e desenvolvimento de variedades de sementes transgênicas colocam em discussão o papel da Embrapa. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é a maior autarquia em agricultura tropical do mundo e goza de uma credibilidade alcançada por poucos órgãos. Dispõe, além disso, de um orçamento de R$ 1,8 bilhão neste ano, ou quase três vezes mais do que ostentava em 2002.

Fruto de uma trajetória de desenvolvimento de soluções para o campo, esta credibilidade é capaz de atrair muitos interesses, para o bem e para o mal. Quando a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou o feijão transgênico desenvolvido pela estatal, no mês passado, colocou seu próprio trabalho em discussão. Ao batalhar durante mais de uma década pelo desenvolvimento de uma semente geneticamente modificada, a Embrapa inscreveu um marco na ciência nacional ou colaborou para a perda de soberania alimentar e para riscos à saúde dos brasileiros?

“O que se deve questionar é por que a Embrapa produz de maneira direta, ou em parceria com empresas capitalistas transnacionais, sementes transgênicas”, afirma Horacio Martins de Carvalho, membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária e engenheiro agrônomo. “Além de serem patenteadas e, portanto, tornarem-se mercadorias, (as sementes transgênicas) contribuem de forma decisiva para a erosão genética.”

Soma-se a isso o fato de que os organismos geneticamente modificados têm contribuído para a oligopolização do patrimônio genético agrário. Em outras palavras, cada vez menos corporações concentram mais poder sobre as sementes utilizadas em todo o mundo, afetando sobremaneira a autonomia dos agricultores, em especial dos pequenos, que se veem forçados a pagar cada vez mais caro pelos grãos que irão plantar.

Nascida em 1973, a Embrapa ganhou a incumbência do regime militar de colaborar para o processo de desenvolvimento do agronegócio e, por extensão, da ocupação do território nacional, uma das obsessões na caserna. Conseguiu. Desenvolveu tecnologias que permitiram o plantio no Cerrado, que hoje representa quase a metade da produção agrícola nacional – ao mesmo tempo, tem menos de 50% de sua cobertura florestal original preservada.

Esperava-se que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva trouxesse uma mudança radical à atuação da autarquia. De fato, houve alterações, mas que na prática passaram a refletir a dicotomia entre Ministério da Agricultura e Ministério do Desenvolvimento Agrário, ou seja, uma divisão entre correntes que atuam a favor do agronegócio e que atuam a favor da agricultura familiar. A Embrapa não aceita falar em tal divisão, e por isso não coloca à disposição os números do orçamento que são voltados a cada categoria produtiva. Sabe-se, porém, que se reflete novamente uma separação parecida com a que se vê entre as pastas de Agricultura e de Desenvolvimento Agrário, em que o primeiro campo leva larga vantagem sobre o segundo.

“Existe a divisão entre agronegócio e agricultura familiar na Embrapa?”, perguntamos a um pesquisador cujo nome será mantido sob anonimato. “Sim, sem dúvida. A gente percebe que pesa mais trabalhar em cima do agronegócio pela questão do mercado, que no fim é quem impõe o que é importante para pesquisas”, foi a resposta. O mesmo pesquisador acrescentou que há necessidade de cumprimento de metas e outras pressões por resultados que mostrem soluções ao chamado “mercado”. 

Feijão das famílias

Segundo dados do IBGE, a agricultura familiar é responsável por 70% da produção de alimentos no Brasil e pelo emprego de 74% da força de trabalho rural, embora ocupe apenas 24% das terras agricultáveis. No caso do feijão, estima-se em 70% o peso das famílias na plantação da principal fonte de alimento nacional.

Os pesquisadores da Embrapa responsáveis pelo feijão transgênico argumentam que a semente vai resistir ao vírus do mosaico dourado, uma inegável fonte de danos aos produtores, e com isso se terá um aumento de produtividade. “Essa é uma doença que causa perdas importantes, levando a condições de insegurança. Doenças gerais não têm cura, você precisa controlar o vetor que produz o vírus. Controlar com inseticida. Uma vez que as plantas fiquem infectadas, não há o que fazer. Então, é extremamente importante ter plantas resistentes a vírus”, afirma Francisco Aragão, que conduziu a pesquisa. 

Em 2006, o feijão era cultivado em 269 mil estabelecimentos agropecuários que ocupavam 764 mil hectares. Para ter uma base de comparação, a soja, principal produto de exportação, alcançava 40,7 milhões de toneladas em 15,6 milhões de hectares de 215 mil estabelecimentos. 

“A Embrapa, em vez de atacar o problema principal, está atacando uma consequência deste problema primário. A causa é um sistema agrícola baseado em monocultivo, uso em larga escala de agrotóxicos, o que leva a uma degradação ambiental que quebra a cadeia trófica (também conhecida por cadeia alimentar)”, critica Rubens Nodari, professor do Departamento de Fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina. Como o próprio Aragão admite, a mosca branca passou a ser um problema com a chegada da soja: o desmatamento em larga escala a partir da década de 1970, quando a commodity atingia bons preços, acabou com os predadores do inseto. 

Precaução

Os contrários ao feijão alterado geneticamente viram na atuação da Embrapa no caso uma violação ao princípio da precaução, assegurado pela Constituição e base da atuação científica: na dúvida, não se leve adiante. A sessão da CTNBio, a comissão responsável por liberar novas variedades de transgênicos, ficou marcada por acusações de que a estatal teve uma conduta como a de qualquer transnacional, deixando de lado as possibilidades de que o grão represente riscos à saúde humana e ao meio ambiente. A pressa na tramitação do processo e os estudos inconclusivos sobre os impactos do produto são o centro da argumentação. 

Renato Maluf, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), um órgão consultivo ligado à Presidência da República, adverte que não se pode condenar a empresa como um todo, lembrando que dentro dela há quem queira discutir a necessidade de desenvolvimento de transgênicos, mas não deixa de manifestar contrariedade com o novo feijão. “O que nós não aprovamos é que uma empresa de pesquisa – ainda mais uma empresa pública – tenha pressa em liberar uma coisa que ainda não está suficientemente testada em todos os seus aspectos.”

Entre outros problemas, o número de cobaias sacrificadas para analisar alterações fisiológicas era muito pequeno – apenas três. Todas eram machos, e com isso não se sabe sobre possíveis efeitos em gestantes. “Em retrospectiva, vemos os resultados negativos de estudos semelhantes no passado”, afirma Maria Izabel Radomski, pesquisadora da Embrapa Florestas, ao recordar agrotóxicos desenvolvidos pela empresa e que pareciam seguros, mas posteriormente se mostraram nocivos à saúde. “Este feijão transgênico não vai ter alguma deficiência? Não existe uma superplanta.”

José Maria Ferraz é, hoje, um dos integrantes da CTNBio. Durante 33 anos foi pesquisador da Embrapa, e por isso ainda se considera um “embrapiano”, ciente da credibilidade ostentada pela empresa em todo o mundo. “Por isso deveria tomar mais cuidado. Não é só o feijão que está em jogo. É o nome da empresa.”

Parceiros

A Embrapa adotou nos últimos anos parcerias com as maiores empresas do setor de biotecnologia. Monsanto, Dupont, Syngenta, Basf, Bayer e Dow Chemical respondem pela maior parte do agrotóxico comercializado mundialmente. São donas, também, do mercado de sementes, em uma atuação que é comparada por pesquisadores à das Sete Irmãs do petróleo, grupo que cartelizou o mercado mundial de combustíveis durante boa parte do século XX.

Hoje, vê-se nestas empresas um risco à autonomia dos agricultores e, por extensão, dos consumidores. Uma vez que o mercado está nas mãos de poucas empresas, o patrimônio genético natural desenvolvido ao longo de séculos pelos produtores vai deixando de existir, fica mais pobre, e resulta em uma dependência das sementes fornecidas por estas empresas – o que implica em um custo que, muitas vezes, leva à venda da propriedade ou ao endividamento. A Embrapa tem desenvolvido variedades transgênicas de sementes por meio de acordos que envolvem, em tese, transferência mútua de tecnologia e investimentos compartilhados. 

Horacio Martins de Carvalho acredita que se procede à privatização da inovação tecnológica, com a Embrapa aparelhada para servir a interesses particulares. “Faz do serviço público um mero trampolim para se alçar, equivocada e lamentavelmente, ao nível dos negócios privados que objetivam o lucro.”

Ele critica ainda o Projeto Biomas. Em 2010, foi firmada uma parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), maior entidade representativa do agronegócio, para analisar as potencialidades de uma agricultura sustentável. O contrato se deu em meio à acalorada discussão pelo enfraquecimento do Código Florestal. A presidenta da CNA, a senadora Kátia Abreu (PSD-TO), argumentou que havia lançado mão da ciência para acabar com as dúvidas. “Há 13 anos há embates entre agricultura e ambiente, e agora procuramos um árbitro imparcial, a Embrapa, que é a opção pela pesquisa, pela ciência”, afirmou à época.

Para Horacio Martins de Carvalho, o que se faz é colocar a credibilidade da Embrapa, ou a presumida imparcialidade, a serviço do desmatamento. “Assunto de tal relevância como a preservação ambiental não deveria ser co-financiada por instituição privada por se saber que parte considerável dos associados da CNA é a principal responsável pela degradação ambiental.”

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