Movimento quer cumprimento de sentença contra o Brasil pela ditadura

'Cumpra-se' reúne pela internet cidadãos de todo o Brasil interessados em forçar execução de sentença que mostra que a Lei de Anistia não é pretexto para deixar de punir torturadores do regime autoritário

São Paulo – Movimentos sociais e cidadãos uniram forças para exigir o cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil devido ao episódio da ditadura conhecido como Guerrilha do Araguaia. Quase um ano após o país sofrer a condenação, estes grupos avaliam que muito pouco foi implementado e, pior, que há tentativas de não levar a cabo tudo o que foi determinado.

“Cumpra-se é uma expressão jurisdicional. A ordem não é minha. Eu recebo e digo ‘cumpra-se’. Daí vem a expressão, porque é uma ordem da Corte Internacional, que condenou o Brasil, determinou o cumprimento, e o Brasil está resistindo a isso”, explica José Henrique Rodrigues Torres, presidente da Associação Juízes para a Democracia.

A ideia é criar uma mobilização virtual e presencial para pressionar o país a cumprir todos os pontos da sentença. Mais de cem pessoas já se somaram à iniciativa em praticamente todos os estados. Semanalmente, os integrantes vão dividir tarefas, e já organizam a realização de atos simultâneos para manifestar o desejo de uma execução efetiva das exigências da Corte Interamericana.

O Brasil é signatário do Pacto de San José, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos. Por isso, reconhece a existência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que integra a Organização dos Estados Americanos (OEA), e suas decisões. Em 14 de dezembro de 2010, a Corte determinou a condenação do Brasil por não haver investigado e punido os envolvidos na repressão aos grupos de resistência à ditadura na região do Araguaia.

Entre outras coisas, ficou determinado que o Estado brasileiro deveria proceder à reparação material e moral das vítimas e de seus parentes, o que inclui as buscas pelos corpos dos que foram mortos pela repressão. Além disso, a Corte foi clara em afirmar que a Lei de Anistia não pode continuar servindo como pretexto para a não punição dos envolvidos nas violações de direitos humanos. Foi reafirmada, assim, a jurisprudência da instituição, que em outros casos similares manifestou que são crimes que não prescrevem, ou seja, seguem sendo passíveis de punição.

Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, critica a postura adotada pelo governo de Dilma Rousseff. A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, fecharam questão de que a reinterpretação da Lei de Anistia cabe ao Judiciário, nada havendo para o Executivo fazer. “Dizer que o Estado brasileiro quer cumprir não é suficiente. Precisa sinalizar que a Lei de Anistia colide com o entendimento da Corte, ter uma postura firme nisso”, acusa.

O Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, entende que não é preciso reformar sua visão a respeito do assunto. Pouco antes da condenação internacional do Brasil, o STF definiu que a Lei de Anistia garantia proteção aos torturadores ao analisar ação de descumprimento de preceito fundamental apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A leitura feita pela maioria de ministros é de que a lei tratou de um acordo amplo da sociedade brasileira, ainda que tenha sido votada em um Congresso sob intervenção do regime autoritário.

“Nossa Lei de Anistia não diz textualmente que anistiou ninguém. Essa é uma interpretação do STF”, critica Beatriz Affonso, diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), um dos peticionários da ação movida contra o Brasil na Corte. “Quem viu os votos dos ministros do STF notou que eles não entraram na discussão dogmática sobre os crimes políticos, o que era a grande brecha de interpretação. Simplesmente fugiram da interpretação jurídica.”

Cumpra-se agora, cumpra-se mais tarde

Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria de Direitos Humanos durante parte do governo Lula, tem defendido que o Brasil não tem escapatória: ou cumpre a sentença agora, ou cumpre mais tarde, com a diferença de poder sofrer vexames internacionais neste caso. Como se trata de uma condenação inédita, há discordância sobre os efeitos práticos do descumprimento. “Isso é uma saia-justa muito grande. Não cumprir significa descumprir um compromisso internacional”, analisa Torres, da Juízes para a Democracia.

O certo é que o nome do Estado nacional vai aparecer em débito nos organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), na qual se pleiteia um assento permanente no âmbito do Conselho de Segurança. “Teremos grande prazer em mostrar à ONU que, apesar do discurso muito lindo na questão dos direitos humanos, o Estado brasileiro tem uma prática diferente”, pontua Beatriz.

No fim deste ano, o Brasil terá de apresentar um relatório sobre como vem dando cumprimento à sentença. Para os movimentos articulados em torno do assunto, não haverá muito a mostrar. Até mesmo a publicação da decisão da Corte em um periódico de grande circulação ocorreu apenas após o prazo, e sem que os familiares de vítimas fossem comunicados com antecedência, o que faz parte do direito à reparação.

Não foi construído um memorial em homenagem a quem resistiu à opressão, nem foi criado um dia em homenagem a estas pessoas. O Grupo de Trabalho Araguaia continua a buscar restos mortais de vítimas escondidas pelas Forças Armadas, mas ainda não foi concluído o trabalho de identificação das poucas ossadas resgatadas. Os arquivos do Estado brasileiro, em especial os militares, não foram tornados públicos para consulta, outra exigência da Corte. 

“Precisamos entender que a sentença é uma oportunidade que se tem de desenvolver uma educação da sociedade para os direitos humanos. O Congresso Nacional não pode dizer que não vai legislar sobre o assunto porque isso colide com o Pacto de San José”, queixa-se Zelic, fazendo menção ao projeto de autoria da deputada Luiza Erundina que visava à revogação da Lei de Anistia, mas foi rejeitado pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

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