‘Enquanto tiver castanheira, mesmo que seja só uma, ainda assim sangro por ela’

Margaridas marcham a partir desta terça para continuar a luta de pessoas como Maria do Espírito Santo, extrativista assassinada no Pará neste ano

Da professora Laisa Santos Sampaio sobre a irmã, Maria do Espírito Santo, morta a tiros no dia 24 de maio: coragem do enfrentamento (Foto: Luiz Carvalho)

Marabá (PA) – É início de uma tarde de quinta-feira e faz muito sol, como em praticamente todos os dias do ano, na cidade de Marabá, a 485 quilômetros a sudeste da capital do Pará. Um menino de 12 anos chamado Rafael serve de guia até uma casa na periferia do bairro Nova Marabá. Os caminhos são de terra e as paredes de tijolo exposto.

Mãe de Rafael, a professora Laisa Santos Sampaio pede desculpas pela desordem. Ela limpa a frente do lugar que construiu com as próprias mãos. Uma parte, com a ajuda do ex-marido. Rafael sai com uma caixa de isopor para vender espetos de carne a R$ 1. Laisa fica para contar a história da irmã, Maria do Espírito Santo, morta a tiros no dia 24 de maio, em uma emboscada ao lado do marido, José Cláudio Ribeiro da Costa.

Líderes do assentamento Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna, a 80 quilômetros de Marabá, eles pagaram por enfrentar madeireiros e grandes pecuaristas em defesa da floresta, que parece ser muito menos importante do que as divisas imediatas trazidas com a derrubada das árvores.

José Cláudio e Maria eram filhos de extrativistas e, quando se conheceram, já haviam passado por outro casamento. No caso de Maria, um relacionamento bastante conturbado, marcado pela violência do primeiro marido e pelo abandono quando ela estava grávida do quinto filho.

Com o salário de professora, profissão que era o sonho do pai, conseguiu sustentar a todos. “Papai dizia que não tinha tido chance de estudar, mas que nós três tínhamos que ser professoras”, recorda Laisa, sem conter as lágrimas.

Professora formada e agora cursando especialização na Universidade Federal do Pará (UFPA) em Currículo, Cultura, Letramento e Educação no Campo, ela trabalhava como vendedora ambulante, quando foi chamada para lecionar pela primeira vez em uma escola do assentamento, à beira do Rio Tocantins. Foi a segunda educadora do colégio, substituindo justamente a irmã, que mesmo sem ter o técnico em Magistério, dava aulas para as crianças.

Ela lembra que pouco antes de Maria ser assassinada, conversavam sobre o que tinham em comum. “Eu disse que uma coisa nos fazia diferente: a coragem do enfrentamento. Ela respondeu: ‘enquanto tiver uma castanheira, mesmo que seja só uma castanheira, ainda assim eu derramo meu sangue por ela’.”

“Sempre dizem que a mulher é sexo frágil, mas Maria, não”, acredita. “A coragem que um tinha, o outro estava junto”, explica Laisa, referindo-se a José Cláudio e á irmã.

Defesa intransigente da floresta

Até o início do projeto do assentamento, José Cláudio e Maria não atuavam nos movimentos sociais. A liderança surgiu com a proposta do agroextrativismo. “Já na primeira reunião que fizemos para criar o assentamento, em agosto de 1996, eles abraçaram a causa da defesa da floresta. A proposta era transformar aquela área em reserva extrativista, inspirado no modelo do Acre, do Chico Mendes”, conta José Batista, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Naturalmente, isso incomodou os grandes pecuaristas, que desejavam mais pasto para o gado, e as madeiras e carvoarias, em busca de matéria-prima barata. “Várias vezes, o Zé Cláudio e a Maria impediram a saída de caminhões com madeira, fotografavam para mandar para o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), murchavam pneus. E mesmo assim, enquanto em 1997 70% das florestas estavam preservadas, na época do assassinato, apenas 30% ainda resistiam”, comenta Batista.

Ex-prefeito de Nova Ipixuna, José Pereira de Almeida, o Zezão (PT-PA) conta que começou a perceber algo errado ao também fazer denúncias e não ver a fiscalização autuar os infratores. “Um pessoal do Ibama tinha amizade com os madeireiros e avisava quando os fiscais iam lá. Ainda contavam quem tinha denunciado. Aí, quando aconteceu a morte, veio a Força Nacional e o Ibama multou gente para caramba”, conta.

De acordo com o órgão, desde maio foram aplicados R$ 3,4 milhões em multas. Teoricamente, todas as madeireiras de Nova Ipixuna foram fechadas. A prática, porém, é outra. Na viagem de volta da reportagem para a região urbana do município no sábado (13), dois caminhões de carvoaria seguindo mata adentro puderam ser vistos.

A volta às origens

Presidente do sindicato dos Agricultores Rurais de Nova Ipixuna, filiado à Central Única dos Trabalhadores (CUT), Eduardo Rodrigues é um dos moradores do assentamento. A água em sua casa com paredes de madeira pintadas de verde vem de um igarapé que passa no quintal. O arroz e o feijão na mesa são de sua propriedade, onde ele também cultiva milho, mandioca, abacaxi e banana. A carne e o açaí são de outros produtores locais.

Porém, a predominância da paisagem plana à beira da estrada, com tocos de árvore, muitos deles queimados, mostram que nem todos exploram os recursos naturais de forma renovável para garantir o sustento.

No dia 12, representantes da CPT, do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, da Associação de Pequenos Produtores no Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira e do assentamento se reuniram em Marabá para discutir a volta ao caráter inicial do projeto.

Parte dessa mudança depende do poder público. Sem a infra-estrutura do Estado e apoio para assistência técnica, muitas vezes em forma de ações simples como um caminhão à disposição para levar os produtos à feira, o desmatamento para venda de madeira ou a transformação da área em pastagem para o gado tornam-se mais atraentes aos assentados. E, na prática, o assentamento se torna uma zona de conflito e um grande depósito de famílias.

O financiamento público também não ajuda. Rodrigues conta que os agricultores tentaram usar o Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar) para mudar a cultura local e investir na fruticultura, mas não foi possível. “Quando chega ao banco daqui, eles dizem que só liberam recurso se houver gado”, indica.

Para o advogado da CPT, isso emperra o avanço dos produtores familiares. “Embora a agricultura familiar tenha expandido territorialmente e tenhamos cerca de 70 mil famílias em uma área de 5 milhões hectares, ainda é uma economia marginal.”

O público vai mal

Por outro lado, o poder público também deixa a desejar em todas as esferas. José Cláudio integrou a lista de marcados para morrer divulgada pela CPT nos anos de 2001, 2002 e 2009. Maria, as de 2004, 2005 e 2010. Ainda assim, de acordo com Laisa, o pedido das lideranças ao governo federal para que fosse implantado um posto da polícia com o objetivo de aumentar a segurança na entrada do assentamento não foi atendido.

A reação do governo do estado do Pará sobre a morte também demonstra que nada tende a mudar, ao menos em curto prazo. Logo após o assassinato, Laisa, o marido, os filhos e Claudelice Santos, irmã de José Cláudio, tiveram de deixar Praia Alta Piranheira com medo de também serem assassinados. Inicialmente, o governo paraense procurou a família para oferecer apoio. Arcou com os custos do velório e disse que providenciaria uma casa para as irmãs, além de oferecer atendimento psicológico a Cláudio Ramon da Silva, neto de 15 anos que o casal de extrativistas criava como filho.

No dia seguinte ao enterro, a equipe esteve presente. Foi a única vez. Claudelice recebeu R$ 400 para levar os pertences a Marabá, enquanto Laisa teve de contar com a ajuda da prefeitura de Nova Ipixuna para conseguir um meio de transporte.

O governo não atendeu mais os telefonemas. Cobrada em Brasília por Laisa, na ocasião em que esteve ao lado de Claudelice para receber uma homenagem em nome de seus irmãos, uma pessoa identificada como Roseana Pereira, representante do governo, mudou o discurso: não iria mais comprar casa, e sim fornecer o material para a construção. Conforme solicitado, o orçamento foi encaminhado para Belém. Ainda não houve retorno. 

Últimos dias

A panela de pressão está sobre um fogão à lenha improvisado na casa de Maria Ildenê da Silva, dona de um lote bem próximo de onde moravam José Cláudio e Maria. A senhora que mantinha uma amizade de 20 anos com a vizinha e, ao lado dela, integrava o coletivo de mulheres criado no assentamento, vive atualmente do Bolsa Família que recebe mensalmente. Sua atividade principal, a extração do óleo de andiroba, foi prejudicada pela safra ruim deste ano.

Dona de uma linguagem simples, ela explica a importância da luta do casal para as castanheiras não irem embora. “O apoio que todo mundo tinha era aqui, na casa deles. O grupo de mulheres bagunçou e nunca mais a gente se reuniu”, diz.

Ildenê comenta que Maria acreditava que a vida estava próxima de chegar ao fim. A dela e a de José Cláudio, porque sabia que não deixariam nenhum dos dois vivos para continuarem a luta. “Para mim, parece que a planta está murcha, precisa de um adubo.”

Daqui por diante

Para o advogado da CPT, o cenário não é nem um pouco animador. “O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) nacional está falido e aqui, no fundo do poço, sem condições de regular nos assentamentos. Com ausência de pessoal, recursos e comprometido por conta da má gestão. O Ibama está tomado por pessoas indicadas de acordo com a conveniência política. E os partidos, com raríssimas exceções, recebem doações de madeireiras durante a campanha”, denuncia.

Segundo ele, a Justiça também faz parte do problema. “A Polícia Federal ainda trata os movimentos sociais com ranço do regime militar e a Civil (dos estados da região) tem grande parte de sua corporação vinculada ao setor madeireiro. Já o Ministério Público, além de ter somente dois procuradores, sofre com as constantes mudanças.”

Diante desse cenário, a pergunta é: o que fazer? “A esperança reside nos movimentos sociais. Todos os avanços nessa região foram por conta da organização e capacidade dos camponeses. E o que acontecer dependerá da capacidade de luta desse movimento”, defende Batista.

Maria do Espírito Santo ainda teve tempo de apresentar sua Tese de Conclusão de Curso. Ela iria se formar em Pedagogia, na UFPA. Pretendia seguir carreira como pedagoga popular no campo.

Por conta da morosidade da Justiça e da polícia, o homem identificado como mandante do crime, o pecuarista José Rodrigues Moreira, e aqueles apontados como executores, Lindojonson Silva Rocha e Alberto Lopes do Nascimento estão foragidos. A CPT acredita que mais pessoas estejam envolvidas com a execução. “Claro que esse fazendeiro não agiu sozinho, certamente tinha respaldo de madeireiros e esperamos que a investigação da Polícia Federal aponte outros mandantes”, torce o advogado da comissão.

Margaridas em Marcha – De 16 a 18 de agosto, a capital federal receberá a maior manifestação de mulheres da América Latina. A quarta edição da Marcha das Margaridas deve levar ao Distrito Federal cerca de 100 mil trabalhadoras rurais que defenderão um modelo de desenvolvimento sustentável para o Brasil com justiça, autonomia, igualdade e liberdade.

Fonte: Portal da CUT

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