Reconhecimento na Justiça de Ustra como torturador é só um passo

Companheira de Luiz Merlindo, assassinado pela ditadura militar, explica motivações de ação que tenta obter declaração de culpa do coronel reformado

São Paulo – Angela Mendes de Almeida deveria ter retornado ao Brasil em 1971. O companheiro dela, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, deixara a Europa dias antes para preparar o retorno. Legal, o militante apresentou seus documentos originais ao ingressar no país. Cinco dias depois, foi preso. Em 19 de julho, torturado, estava morto. Angela, na ilegalidade, retornaria apenas após a promulgação da anistia, em 1979.

Passados 40 anos, a família de Merlino quer encerrar uma pendência. Esperam que o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), departamento de repressão que prendeu, torturou e matou o estudante universitário e jornalista, seja considerado culpado pelo Judiciário.

Ocorre nesta quarta-feira (27), no Tribunal de Justiça de São Paulo, a audiência que vai ouvir as testemunhas da morte de Merlino. Amigos de partido, o historiador Joel Rufino dos Santos e o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, foram chamados para darem a versão sobre os fatos. Ustra, até agora, não foi escalado para depor, e pode optar por não comparecer à sessão. As testemunhas de defesa do militar são o ex-presidente José Sarney – atualmente senador pelo PMDB-AP –, então integrante da Arena, o partido de sustentação da ditadura, o ex-ministro Jarbas Passarinho, três generais e um coronel da reserva.

Por conta das dificuldades em obter uma condenação penal, a família Merlino passou a apostar na via cível para que se tenha, ao menos, uma declaração do Estado brasileiro reconhecendo o papel de torturador de Ustra. “Esse processo é importantíssimo para nós, mas é apenas um passo. Concluído este processo, ainda não teremos só com isso conseguido o que já conseguiram outros países da América Latina. É um momento da luta”, pontua Angela, que na tarde da última sexta-feira (22) conversou por telefone com a Rede Brasil Atual.

Esta é a segunda tentativa de fazer com que se reconheça a culpa de Ustra na morte de Merlino. Em 2008, os familiares moveram ação cível declaratória com base em precedente aberto pelo êxito de processo de mesmo cunho movido pela família Teles, mas o Tribunal de Justiça aceitou os argumentos do coronel e extinguiu o pedido.

Confira a seguir a entrevista. 

RBA – A família teve ação arquivada em 2008. Como foi a decisão de ingressar com uma segunda ação?

Para entender essas ações, é preciso levar em conta a Lei de Anistia de 1979. Que, aliás, foi reforçada por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que consagrou essa interpretação de que não é possível um processo criminal. Ou seja, a lei diz que estão anistiados os crimes políticos e conexos, e o STF confirmou a interpretação de que a palavra “conexos” refere-se ao torturador.

Então, os processos são na área cível. Porque na área penal, diferentemente do que ocorreu em toda a América Latina, têm sido impossíveis no Brasil. Em 2008, nossos advogados seguiram uma experiência bem sucedida pela família Teles, que moveu ação declaratória na área cível. Fizemos a mesma coisa – eu e a Regina Merlino, irmã dele.

O que aconteceu é que os advogados do Ustra impetraram um embargo no Tribunal de Justiça e conseguiram uma liminar. O que é um absurdo porque a ação da família Teles havia sido aceita. Recorremos dessa decisão de extinção ao Superior Tribunal de Justiça, e não se tomou conhecimento. 

No ano passado entramos com ação por danos morais. Os advogados do Ustra tentaram embargar. O embargo foi aceito, mas o que não foi aceito pelo TJ foi a liminar, de modo que o processo não foi paralisado. Foi marcada essa audiência das testemunhas, que nos parece o momento mais importante na medida em que, pela primeira vez, na Justiça as pessoas que foram torturadas e que o viram ser torturado vão poder testemunhar. E isso vai ficar registrado nos autos dos tribunais.

RBA – A respeito da Lei de Anistia, existe também o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que considera que a lei não deve ser pretexto para deixar de condenar violações deste tipo.

Tudo isso é muito lento. Nós, familiares de vítimas, estamos tentando ver de que maneira a gente pode levar o Executivo, o Legislativo e o Judiciário a cumprir as diretrizes dessa sentença (da corte interamericana). Pelo que pessoalmente observei em várias reuniões, o governo federal está simplesmente tentando cumprir tudo o que se refere à questão da busca de corpos, e não está interessado em aplicar a cláusula que diz que a Anistia de 1979 é uma “autoanistia”, que não tem valor jurídico. Como processar isso é um caminho que ainda não foi formulado por nós. 

RBA – O que significa o Brasil não levar adiante processos penais contra torturadores?

É um absurdo. Tem tudo a ver com a manutenção da tortura como método de investigação no Brasil. O país vai receber uma comissão da ONU (Organização das Nações Unidas) para investigar torturas em delegacias, prisões. Sabe-se que, nesses locais, há graves violações. A comissão vem também para apurar as graves violações e execuções sumárias que a polícia comete a todo dia e a toda hora. O caso mais notório é o daquele menino no Rio de Janeiro (Juan Morais, de 11 anos, foi morto por quatro policiais militares na semana passada). É um caso entre milhares que ocorrem. A impunidade dos torturadores tem uma repercussão direta sobre a situação do Brasil.

RBA – Como foi entrar em contato com as testemunhas para a audiência, para recontar a história?

É um longo processo. Nunca estivemos totalmente desconectados com esses companheiros. A discussão foi amadurecendo. Sabíamos quem eram as pessoas que tinham presenciado. Estávamos em contato com elas, houve várias discussões em que a possibilidade de testemunhar foi discutida. Quando apareceu o primeiro processo, começamos a ver quem concordava em testemunhar. As testemunhas indicadas no atual processo foram as mesmas do de 2008. Bem, e você sabe quais são as testemunhas indicadas por Ustra.

RBA – Sarney, Jarbas Passarinho e alguns militares. A senhora gostaria de opinar a respeito?

Prefiro não opinar. Existem suficientes opiniões em torno deste absurdo.

RBA – Qual a importância para a família de se concluir o caso?

Esse processo é importantíssimo para nós, mas é apenas um passo. Concluído o processo, ainda não teremos só com isso conseguido o que já conseguiram outros países da América Latina. É um momento da luta.

RBA – É também o momento de não se deixar esquecer nossa história?

É um momento importantíssimo não só para o caso do Merlino, mas para que todas as pessoas que acham que não aconteceu nada – e que acham que não está acontecendo nada. Continua-se a torturar, continua-se a matar sumariamente, sem julgamento. Continuam os desaparecimentos de corpos. Que as pessoas tomem conhecimento da realidade do Brasil. A impunidade de ontem está diretamente ligada à impunidade de hoje.

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