Brasil vê imagem internacional arranhada

Anistia para torturadores e ação sobre Belo Monte na OEA comprometem democracia interna

Protesto de populações afetadas por obras da barragem de Belo Monte (Foto: ©Agência Pará/Lucivaldo S.)

São Paulo – As recentes manifestações do governo brasileiro em oposição a decisões da Organização dos Estados Americanos (OEA) podem colocar o país na ilegalidade no campo internacional e pôr sob suspeição o processo de fortalecimento da democracia do país.

Organizações não governamentais apresentaram esta semana a petição final do caso da hidrelétrica de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A leitura é de que, internamente, os recursos judiciais e políticos para frear a obra se esgotaram e de que o Estado nacional não deu proteção às populações que podem se ver afetadas pela hidrelétrica.

A ação dá sequência ao maior atrito do governo Dilma Rousseff no campo internacional. Este ano, quando a entidade integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA) concedeu uma medida cautelar a favor das comunidades indígenas e ribeirinhas afetadas pela construção em Altamira, no Pará, o Palácio do Planalto e seus ministros desqualificaram a decisão e indicaram que Belo Monte seguiria em frente. 

Isso aumenta a probabilidade de que o Brasil vir a responder a mais uma ação na Corte Interamericana. “O posicionamento do governo Dilma mostra uma mudança brusca e radical de desrespeito a um mecanismo intergovernamental”, argumenta Andressa Caldas, diretora da ONG Justiça Global.

Lei de Anistia e validade

Em paralelo, a Advocacia Geral da União (AGU) reiterou sua versão de que a Lei de Anistia, aprovada em 1979 pelo Congresso, protege todos os crimes cometidos pela ditadura militar (1964-85). A resposta é vista como uma afronta à decisão da Corte Interamericana, que no ano passado condenou o Estado brasileiro ao avaliar uma ação relativa ao episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia. A sentença foi proferida após o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitar ação que visava a que torturadores pudessem ser processados por causa da imprescritibilidade das violações de direitos humanos. 

O autor daquela arguição, o jurista Fábio Konder Comparato, lamentou em conversa telefônica com a Rede Brasil Atual que o governo brasileiro mantivesse a posição, desrespeitando uma jurisdição internacional à qual aderiu voluntariamente em 1992. “Isso significa, de modo geral, que o Brasil se coloca fora da lei no plano internacional, e especificamente que o Brasil voltará a ocupar o banco dos réus no processo referente ao caso da Guerrilha da Araguaia”, afirmou.

Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, avalia que a medida deixa o país sem condição de participar ativamente no cenário mundial, em especial na defesa dos direitos humanos, e tem sérias implicações sobre o pleito do Itamaraty de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. 

Comparato e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentaram no ano passado recurso à decisão do STF, indicando que era preciso reavaliar o caso. A Corte Interamericana havia sido clara ao afirmar que a Lei de Anistia não deveria servir de pretexto para proteger crimes contra os direitos humanos. Ao mesmo tempo, a entidade regional cobrou esforços pela localização dos corpos de desaparecidos políticos.

O presidente da Associação Juízes para a Democracia, José Henrique Rodrigues Torres, espera que, ao fim, cumpra-se integralmente a decisão interamericana. “Na nossa concepção, num Estado democrático de direito, num país minimamente sério, tem de cumprir a decisão.” Ele acredita que o Supremo acabará provocado a opinar novamente sobre o tema por conta de investigações que levarão a processos contra agentes do regime, e terá a oportunidade de reformar sua visão. 

Torres lembra que o sistema jurídico internacional é relativamente novo, ainda mais em se tratando de direitos humanos, e que ainda há certas dúvidas sobre os impactos de descumprimento de decisões do gênero. O certo é que o Brasil sofrerá grave constrangimento em órgãos multilaterais com a aplicação de sanções caso decida levar adiante a leitura de que a sentença da Corte não invalida a leitura interna sobre a Lei de Anistia. “É algo que o sistema judicial vai ter de se acostumar. Ainda há uma resistência muito grande, inclusive justificada por uma antiga noção de soberania. Oras, quando ratificamos um tratado internacional, fazemos isso exercendo nossa soberania.”

Em nota, a OAB condenou a postura da AGU, indicando se tratar de uma tentativa de não enfrentar a realidade. O presidente da Ordem, Ophir Cavalcante, associou Dilma a Fernando Henrique Cardoso ao lembrar a famosa declaração em que o ex-presidente pediu que se esquecesse tudo o que havia escrito. “No Brasil, parece que a pressão política é tão grande que as pessoas tendem a mudar de opinião, negando toda a sua convicção pessoal.”

Contexto negativo

Esta semana, a presidenta determinou também que se retire o caráter de urgência do Projeto de Lei 41, de 2010, que tramita no Senado. Dilma quer que seja avaliada a versão de 2009, anterior à votação na Câmara, e que na prática mantém o caráter de sigilo eterno sobre parte dos arquivos brasileiros ao permitir que documentos classificados como ultrassecretos possam ter o prazo para abertura renovado indefinidamente. A pressão sobre Dilma veio do Senado, em especial dos ex-presidentes da República Fernando Collor de Mello e José Sarney.

O ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência Paulo Vannuchi acredita que tanto esse caso quanto a decisão da Corte Interamericana não deixam saída. “Há uma pressão que é crescente, e que seguirá crescendo nos próximos anos. Acabou o período da impunidade. O Brasil tem dois caminhos. O caminho de protelar mais e o caminho de fazer logo. Não existe o caminho de não fazer.” 

Embora evite críticas diretas ao governo, Vannuchi foi um dos afetados pela mudança de relações entre o governo e a comunidade internacional. Em abril, Dilma dedidiu retirar a indicação do ex-ministro como integrante da Comissão Interamericana, o que significa que o país não terá representante nessa instituição a partir de 2012. O anúncio foi feito após a concessão de medida cautelar pela CIDH para proteger comunidades afetadas pela hidrelética de Belo Monte.

Comparato acredita que a soma dos diferentes episódios mostra que há uma corrente de forças que tenta frear a possibilidade de progresso. “Dilma está inteiramente submetida à pressão dos militares nessa questão, sendo que os militares não estão sozinhos, pois fazem parte do núcleo oligárquico que comandou o Brasil durante o regime.”

Democracia interna

Com diferentes graus de irritação, vários ministros manifestaram desacordo com as advertências feitas pela Comissão Interamericana, que indicou a necessidade, em primeiro lugar, de que se faça uma consulta aos povos atingidos para saber se querem ou não a instalação da hidrelétrica. “A OEA que vá cuidar de outros assuntos”, ameaçou o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que já no ano passado havia dado por inválida a decisão da Corte Interamericana a respeito da Lei de Anistia.

Andressa Caldas demonstra surpresa com a postura de Dilma a respeito da OEA e avalia que o discurso feito internacionalmente, de respeito aos direitos humanos, não se cumpre da porta para dentro. Para a ativista, as instâncias internacionais são uma proteção extra para minorias e populações fragilizadas que não tenham encontrado dentro de seus países o respaldo necessário. Se essas instituições, reconhecidas pelo Brasil em tratados aprovados pelo Congresso, não são mais respeitadas, dá-se um passo atrás em termos de processo democrático. 

“Isso é grave para a democracia brasileira como um todo, e não só para as vítimas e as comunidades que lutam por direitos humanos. É um tema que deve ser de preocupação da sociedade”, alerta a advogada da Justiça Global. 

A afronta à OEA é vista como um fator de enfraquecimento da imagem brasileira na comunidade internacional. O esforço dos últimos anos do governo Lula, em especial durante grandes conferências globais, era o de mostrar que o Brasil sabia aliar desenvolvimento econômico, sustentabilidade e respeito à cidadania. 

No começo deste mês, durante a Assembleia Geral da Comissão Interamericana, um grupo de organizações de outras nações sul-americanas apresentou um protesto à postura de não cumprir a medida cautelar relativa a Belo Monte. “Tal atitude implica em um grave precedente para a proteção dos direitos humanos, para a democracia e, por extensão, para a autoridade e a força do Sistema Interamericano”, completou Andressa.

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