Arquivos repatriados da Justiça militar reforçam necessidade de Comissão da Verdade

São Paulo – A cerimônia de repatriação do acervo do “Brasil Nunca Mais”, na sede do Ministério Público Federal de São Paulo foi transformada em defesa da instalação da Comissão […]

São Paulo – A cerimônia de repatriação do acervo do “Brasil Nunca Mais”, na sede do Ministério Público Federal de São Paulo foi transformada em defesa da instalação da Comissão da Verdade para apurar violações de direitos humanos cometidos pelo Estado durante a ditadura militar. Eles deixaram claro que o material extraído do Superior Tribunal Militar (STM) ainda durante o regime autoritário é apenas uma parte do processo de reestabelecimento da verdade sobre o período.

O arquivo foi trazido de Chicago, nos Estados Unidos, no Center for Research Libraries, onde vinha sendo mantido havia 26 anos. São 543 rolos de microfilme, que totalizam 1 milhão de páginas de 707 processos. Há informações sobre 1.843 vítimas, incluindo mortos e torturados que sobreviveram. Por serem documentos da instância mais elevada da Justiça Militar, apenas processos que alcançaram a última instância estão incluídos. 

Entre 1976 e 1985, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que congrega as igrejas protestantes, e a Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo, comandada por Dom Paulo Evaristo Arns, forneceram o respaldo financeiro e político ao projeto, que montou o primeiro retrato sistemático do funcionamento do regime repressivo. Advogados retiravam os arquivos legalmente durante o dia e as ações eram fotocopiadas durante a noite. Ao término do regime, apenas a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aceitou abrigar parte do acervo, que migrou na totalidade, em forma de microfilme, aos Estados Unidos.

Em 1985, poucos meses após o fim do regime, foi publicado um livro com o mesmo título que virou um sucesso de vendas, com vinte edições nos dois primeiros anos. Redigido por Ricardo Kotscho e Frei Betto, o texto fazia um apanhado dos casos de modo a mostrar o modo de atuação do aparato militar.

A cerimônia, realizada no abarrotado auditório do Ministério Público Federal, na capital paulista, teve homenagem a Paulo Vannuchi, ex-ministro de Direitos Humanos, coordenador da operação de coleta dos documentos. Ele acredita que a colocação dos arquivos na internet coloca o país em um novo patamar em relação às investigações a ao uso acadêmico deste conteúdo. Vannuchi acredita que “Brasil Nunca Mais” poderá prestar uma importante colaboração à Comissão da Verdade. “Sendo aprovada (a comissão), o primeiro trabalho será um mergulho nesse material e, a partir desse mergulho, programar uma série de audiências.”

Ele acrescentou que o Brasil deve cumprir incondicionalmente a condenação que sofreu ano passado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. A entidade, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), avaliou no ano passado que a Lei de Anistia não pode servir de pretexto ao não julgamento de agentes envolvidos na violação de direitos humanos, entre uma série de outras determinações. “Há uma pressão que é crescente, e que seguirá crescendo nos próximos anos. Acabou o período da impunidade. O Brasil tem dois caminhos. O caminho de protelar mais e o caminho de fazer logo. Não existe o caminho de não fazer”, avaliou o ex-ministro.

Outro lote de documentos, este inédito, será remetido de Genebra, na Suíça, do CMI. No total, são 3.500 documentos com bastidores do projeto “Brasil Nunca Mais”, que inclui detalhes sobre a articulação entre o então cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e o conselho. O projeto foi responsável por denunciar, ainda durante o regime autoritário, a prática de tortura e de outras violações de direitos humanos, chegando ao nome de 444 torturadores.

O processo de digitalização e de publicação na internet deve demorar um ano e será conduzido pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo, pelo Arquivo Nacional e pelo Armazém Memória. Após este período, o acervo ficará integralmente à disposição para consulta pela internet. 

Idealizador do Armazém Memória e vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, afirmou que há um enorme ganho em não precisar discutir se se poderá ou não acessar os arquivos do regime. “Ter acesso a isso só vai fazer bem para o país. Temos um milhão de páginas que, quando indexadas, em um sistema de busca moderno, pode trazer elementos novos para muitas situações que podem ter passado desapercebido em 26 anos de pesquisa manual.”

Para Marlon Weichert, procurador regional da República em São Paulo, o conteúdo trazido de volta não pode ser tomado como “verdade”, porque as versões dos fatos apresentadas são distorcidas na origem, nos processos tomados sob tortura. Apesar disso, ao alcançar o STM, era comum que as vítimas retificassem os processos, corrigindo informações.

“Que esse material possa servir de convite à reflexão sobre a necessidade de concluirmos nosso processo de justiça de transição”, pregou Weichert. A instalação da Comissão de Verdade, defendida pelo governo federal e em discussão no Congresso Nacional, permitiria estudar episódios ocorridos durante a ditadura, incluindo apuração sobre o paradeiro de desaparecidos e de seus corpos, além de detalhes sobre crimes cometidos por agentes do Estado. O procurador citou ainda a necessidade de o país cumprir a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O presidente da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Wadih Damous, foi um dos mais aplaudidos da tarde. Ele lembrou que a entidade precisa ter um papel na “luta pela verdade” e que a defesa da memória deve ser permanente. Damous criticou personagens ligados à ditadura que se aproveitam de versões da história para se inscrever como próceres ou mártires.

“Vemos ainda hoje integrantes do regime militar querendo passar sua versão da ditadura, querendo desqualificar a versão dos militantes”, alertou Damous. “Temos o direito de ver os criminosos, os terroristas de Estado, no banco dos réus com o devido processo legal. Não lutamos pelo direito deles, de torturar e de perseguir, lutamos pelo direito de que se sentem no banco dos réus.”

Eni Moreira, advogada que deu início ao processo, também recebeu honrarias e mostrou-se bastante emocionada. Delora Wright, filha do reverendo presbiteriano Jaime Wright, um dos pilares do trabalho, também recebeu homenagens. Dom Paulo, convidado, recusou-se a participar. Ele manifestou, em carta, não ter feito nada de excepcional. Os religiosos foram peça-chave para garantir a denúncia de violações de direitos humanos.

 

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