‘Enterro sem corpo’ de vítima da ditadura é símbolo da necessidade de buscas por corpos

Caso de Ruy Carlos Vieira Berbert explica porque, para as famílias, é tão importante saber o destino dos parentes mortos pela repressão

No cemitério de Vila Formosa, zona leste de São Paulo, corpos de vítimas da ditadura foram ocultados por agentes da repressão (Foto: Divulgação/Serviço Funerário)

São Paulo – O sapo entalado na garganta, por fim, havia desaparecido. Foram 21 longos anos em que o malquisto animal habitou aquelas úmidas paragens. Sempre se disse por aí que era melhor engolir o sapo do que o brejo inteiro. Ruy discordou: aquele sapo não lhe pertencia. Apareceu sem ser chamado e foi ficando, provocando falta de ar e um incômodo constante. Agora, finalmente, Ruy podia encerrar a extensa noite de insônia e voltar a dormir.

O caso de Ruy Carlos Vieira Berbert, filho de Ruy Thales Berbert, é fértil em exemplos sobre a importância de se enterrar os mortos. Este hábito ancestral encontra paralelos em diversas culturas e deixa claro que o ato de despedida da pessoa querida vai além de uma questão religiosa ou política. Encontrar os corpos ocultos sob o solo do Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, não é capricho de algumas famílias, mas uma necessidade de resgatar a própria dignidade.

Ruy Carlos deixou Regente Feijó, no interior paulista, quando ingressou na Universidade de São Paulo (USP). Na capital do estado conheceu a dureza da ditadura, a necessidade da militância e a clandestinidade. Quando foi preso no famoso Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, em 1968, ouviu um pedido dos pais para que deixasse a militância. “Esse é o meu sonho. Isso é o que penso. Amo muito vocês, mas vou continuar”, respondeu.

Meses depois, encontrou-se pela última vez com a família. Daquela Praça da República, partiu para Cuba, dando início a um longo período de espera. “O quarto do Ruy, do jeito que deixou quando foi para a clandestinidade, do mesmo jeito ficou. Tudo limpinho, tudo arrumadinho. Tinha guarda-roupas, a cama de solteiro, um par de sapatos”, conta Amelinha Teles, ex-presa política, sobre a cena que presenciou em 1993, quando se encerrou a imensa noite de Ruy Thales Berbert.

Dias antes, ela recebera uma ligação de Ruy avisando sobre o velório do filho. Amigos de colégio e da faculdade, parentes e políticos foram chamados para o ato de 19 de maio na Câmara Municipal de Jales, no interior paulista.

Morte comprovada

Bispo, discurso, urna funerária. Mas, dentro do caixão, no lugar do corpo, sapatos e roupas. “Meu filho: sua mãe, sua irmã e eu jamais te esqueceremos. Foste castigado cruelmente por ser patriota. Temos muito orgulho de você. Ficará na história” foi a mensagem lida por Ruy, o pai.

“Apesar de a gente não tê-lo de volta com o velório, foi como se tivesse reconquistado. Meu pai queria provar para ele mesmo que seria um alívio mostrar quem foi o filho dele, o porquê de acontecer tudo aquilo”, rememora Regina Berbert, irmã do militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo). 

O velório teve de esperar a efetiva comprovação da morte. “Em alguns momentos fechava o olho, sentia ele chegando. Era como num sonho. Até hoje a gente sente saudades, lembra da época de crianças”, confessa a irmã.

O codinome de Ruy, João Silvino Lopes, apareceu em arquivos abertos no início dos anos 1990. Uma chamada telefônica do pessoal do Grupo Tortura Nunca Mais recolocou a família Berbert na rota das buscas. O caminho indicado foi Natividade, hoje estado de Tocantins. Foi possível, enfim, reunir documentos e testemunhas que atestavam a morte de Ruy Carlos em dois de janeiro de 1971.

O corpo estava no cemitério da cidade, mas encontrá-lo e fazer a identificação seriam tarefas muito complicadas, que poderiam ter se arrastado até hoje. Ruy, o pai, achou suficiente parar por aí. Agora tinha certeza da morte de seu filho e sabia de parte de seus últimos dias. Era hora de fazer o velório.  “Para nós, foi de suma importância em todos os sentidos. Em restabelecer tudo, tudo, tudo. Para dar um sentido a tudo aquilo que aconteceu”, afirma a irmã de Ruy Carlos. Analisando a fundo a própria dor, ela não tem dúvidas sobre a necessidade de levar adiante a busca por desaparecidos políticos em Vila Formosa.

A página que não vira

O crime de ocultação de corpos é considerado de caráter continuado pela legislação internacional, ou seja, o crime não cessa enquanto não se localizam os restos mortais. “A ocultação gera um sofrimento enorme para quem ficou. Só o fato de não ter conseguido localizar o corpo já faz dessa família uma vítima do período”, lembra a procuradora Eugênia Fávero, do Ministério Público Federal em São Paulo.

Enquanto não se cumpre o luto, a página não vira. A vida segue em ritmo estranho, a morte é uma dúvida. “Uma hora, pensava ‘deve estar vivo’. Outra hora, pensava ‘deve estar morto’. Outra hora, pensava ‘ah, judiaram dele e deve estar louco’”, afirma Ilda Gomes da Silva, esposa de Virgílio Gomes da Silva. A dúvida persistiu até 2004, quando o cruzamento de documentos permitiu ter certeza de que o corpo do marido estava enterrado em Vila Formosa.

Amelinha Teles entende bem a situação. Ela teve a morte entalada na garganta. Quando esteve presa pela repressão, em 1972, viu um companheiro de luta saindo da sala de tortura em uma maca. “Sabia que ele estava morto, tive a oportunidade de saber racionalmente, mas não tive a oportunidade de me despedir dele, de fazer um enterro. Só em 1980 me senti aliviada porque conseguimos resgatar os restos mortais que estavam em uma sepultura em Perus e fizemos o enterro em Niterói, que era a terra natal dele.” 

Pensando na preservação da memória e no resgate da dignidade, familiares de vítimas, sobreviventes e parte do poder público querem construir memoriais em Perus e na Vila Formosa. “Você tem a tradição da humanidade de reverenciar os mortos. Faz uma homenagem, coloca uma flor. Isso é fundamental. As pessoas querem ter a certeza da morte e um local para chorar. É uma forma de reverenciar quem morreu”, explica Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

Gregório Gomes da Silva, filho de Virgílio, retornou ao Brasil em 1990 e se colocou de imediato na busca pelo destino do pai. “Quero ter essa esperança. Não é pela ossada, pelos restos mortais, isso não vai mudar aquilo que penso sobre ele. É mais como uma simbologia, é importante para o país”, ressalta.

Gregório, os irmãos e Ilda têm esse direito: o sapo está atravessado na garganta há 41 anos.

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