Biodiversidade em risco

Para governo Temer, parceria com setor do agrotóxico para pesquisar abelhas é ‘avanço’

Especialistas ouvidos pela RBA defendem pesquisas públicas e isentas, sem financiamento direto e a influência dos fabricantes de produtos relacionados à mortandade dos insetos que atuam na reprodução vegetal

Hugo Oliveira/Ibama

Estudos realizados em todo o mundo apontam os agrotóxicos como principal causa do desaparecimento de colmeias inteiras, de diversas espécies

São Paulo – O polêmico edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para selecionar pesquisadores para cinco linhas de pesquisa envolvendo abelhas e agrotóxicos é a ponta do iceberg do processo que está levando à extinção de diversas espécies desses insetos no país. Por baixo do problema estão a fragilidade da legislação e da fiscalização sobre a “indústria do veneno”, principal causa do sumiço desses animais, fundamentais para a polinização e reprodução de mais de 70% das culturas agrícolas e da flora.

Na avaliação de especialistas que falaram à reportagem na condição de anonimato, o edital conjunto expõe a mistura de objetivos e interesses públicos e privados, podendo favorecer o setor empresarial, que deveria estar sendo regulado. Assinam a chamada pública o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis  (Ibama), Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e  Comunicações (MCTIC) e a Associação Brasileira de Estudos das Abelhas (A.B.E.L.H.A), formada por entidades sindicais patronais, como de produtores de soja, milho e algodão, e indústrias de agrotóxicos, como a Bayer, Basf e Syngenta.

Na última sexta-feira (15), a RBA publicou reportagem sobre o pedido de impugnação do edital pela Câmara de Meio Ambiente do Ministério Público Federal (MPF). Os procuradores apontam ilegalidade na celebração da parceria, que tenha por objeto, envolva ou inclua, direta ou indiretamente, delegação das funções de regulação, de fiscalização, de exercício do poder de polícia ou de outras atividades exclusivas do Poder Público (para ler o ofício, clique aqui).

Em nota técnica enviada à redação após a publicação da reportagem – a mesma enviada ao CNPq para respaldar argumentos em defesa da parceria diante da impugnação do MPF –, o Ibama defende a parceria enquanto “fato inédito” desde a criação da Lei de Agrotóxicos, em 1989. O que representa, para a autarquia federal, “um grande avanço em direção à geração de dados nacionais, por pesquisadores nacionais, com o intuito de diminuir a dependência de informação gerada diretamente pelo setor regulado ou por países desenvolvidos e ter maior embasamento científico para formular instrumentos adequados às especificidades brasileiras com foco na proteção das espécies nativas do Brasil”.

Ainda segundo a nota (clique aqui para acessar o documento), a “celebração da parceria envolvendo recurso privado – ainda que proveniente do setor regulado – não incorre em delegação das funções de regulação, fiscalização, de exercício do poder de polícia ou de outras atividades exclusivas de Estado, visto que a decisão de utilizar ou não o resultado das pesquisas geradas no âmbito desta chamada pública no desenvolvimento das metodologias de avaliação de risco, justificando tecnicamente sua posição, cabe exclusivamente ao Ibama”.

E invoca o princípio 16 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente, de 1992 – o Princípio do poluidor-pagador, segundo o qual o potencial poluidor é quem deve arcar com o ônus de fornecer ao Estado os elementos necessários para o controle do meio ambiente afetado por sua atividade econômica.

“É com base nesse princípio, já consolidado no direito ambiental”, segundo a nota,  que o ônus de gerar o dossiê recai sobre os interessados em obter o registro do agrotóxico, uma vez que a responsabilidade de comprovar que um produto pode ser utilizado sem incorrer em danos à saúde humana ou ao meio ambiente é do interessado, potencial poluidor, em comercializá-lo, e é este, portanto, quem deve suportar o custo de gerar as informações demandadas pelo Estado para que as avaliações necessárias possam ser feitas e ações de prevenção e controle possam ser estabelecidas.

E sustenta ainda que a avaliação ambiental de agrotóxicos é uma parte importante do processo de aprovação, ou não, do uso de um determinado produto. E “ela depende da existência de dados científicos que suportem as conclusões sobre uma determinada situação”, e que “até o momento quase que a totalidade dos dados científicos são fornecidos pelos registrantes, exigindo-se destes que os estudos sejam conduzidos sob sistemas de qualidade que garantam a rastreabilidade dos dados e possibilitem ao ente público avaliar se os resultados são fidedignos”.

Ingenuidade?

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, os argumentos do Ibama são “no mínimo ingênuos”. Primeiro porque os recursos oriundos do setor privado deveriam ser repassados por meio da assinatura de termos de ajustamento de condutas firmados pelas partes e também via pagamento de multas. Em artigo publicado no jornal Valor em 11 de dezembro, a advogada especialista em direito ambiental e minerário, Marina Gadelha, afirma que apenas 2% das multas aplicadas pelo Ibama são pagas.

E depois porque sobram exemplos de conflitos de interesses entre o CNPq e a A.B.E.L.H.A. Conforme destacam, a atual diretora executiva da entidade, a economista Ana Lucia Delgado Assad, tem folha corrida no órgão federal de fomento à pesquisa. 

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Os especialistas ouvidos pela reportagem, que temem perseguição do setor empresarial, sustentam ainda que o Manual de Avaliação de Risco Ambiental de Agrotóxicos para Abelhas, publicado pelo Ibama em 2017 – o qual o MPF teme que venha a ser alterado a partir dos resultados das pesquisas cujo edital está sendo impugnando – tem entre seus autores profissionais de entidades públicas comprometidos com o setor produtivo.

Entre eles, o professor Osmar Malaspina, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Rio Claro, proprietário de empresa fabricante de desinfetantes domissanitários (controle de insetos e fungos para uso doméstico). Em publicidade na internet, a empresa consta como atacado e fabricação de produtos químicos.

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Para colocar mais lenha na fogueira dos interesses públicos e privados em conflito, eles ressaltam que as linhas de pesquisa do edital conjunto MCTIC/CNPq/Ibama/A.B.E.L.H.A coincidem não só com a missão e objetivos da associação constituída por entidades sindicais patronais e pela indústria.

Convergem ainda para os de outro programa, o Colmeia Viva, iniciativa da Basf, Bayer, Dow, Du Pont e Syngenta – que também integram a A.B.E.L.H.A – para “incentivar o diálogo entre agricultores e apicultores para caminhos que valorizem A proteção racional dos cultivos” e que tem como missão “promover o uso correto de defensivos agrícolas na agricultura brasileira para proteger os cultivos e contribuir na garantia do direito básico de alimentação das pessoas, respeitando a apicultura, protegendo as abelhas e o meio ambiente”.

Procurado novamente pela RBA, o CNPq não se manifestou até o encerramento da reportagem.

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