Dificuldades financeiras e instabilidade no relacionamento motivam aborto clandestino, diz pesquisa

Pesquisadora da Fiocruz ouve o relato de mulheres pobres que colocaram suas vidas em risco tomando chás, comprimidos abortivos ou se submetendo a procedimentos perigosos em clínicas de fundo de quintal

Em meio às manifestações de diversas entidades sociais contra a possibilidade de alteração da redação do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH3) que trata da descriminalização do aborto, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou uma pesquisa sobre experiências de quem, por alguma razão, interrompeu a gravidez.

Simone Mendes de Carvalho, autora do estudo, ouviu 16 mulheres selecionadas em unidades do programa saúde da família de Cabo Frio, RJ, que se submeteram a abortos clandestinos. “Por se tratar de uma prática ilegal, é realizado em condições precárias, que leva a um expressivo número de mortes evitáveis e outros agravos à saúde, como infecções e infertilidade ”, comenta. “Por isso a questão deve ser tratada como um problema de saúde pública que afeta a vida de várias mulheres, dentre elas jovens e adolescentes”.  

Pelo relato das entrevistadas, houve um total de 44 casos de gravidez, dos quais 22 resultaram em aborto provocado. Elas tinham entre 14 e 29 anos de idade na época que abortaram, tendo a maioria entre 18 e 25 anos. Quando as entrevistas foram feitas, uma delas tinha quatro filhos e entre as demais havia quem tivesse um, dois, três ou nenhum.

Segundo a pesquisadora, nos 22 casos os procedimentos foram realizados em condições precárias e de risco. Alguns pela ingestão de comprimidos que estimulam contrações ou de chás abortivos conhecidos popularmente; outros em clínicas clandestinas, de fundo de quintal, onde não há condições mínimas de higiene e os profissionais são desqualificados inclusive quanto ao manuseio dos instrumentos. “Em todos esses abortos as mulheres tinham pouca ou nenhuma informação sobre o que ia acontecer e sobre os riscos que estavam correndo. Todas ficaram expostas a um perigo eminente de complicações graves e até de morte”, explica.

Do total de casos, 12 tiveram algum tipo de consequência, como hemorragia, cólica, desmaio, febre e dores. E em 10 deles a mulher procurou por algum serviço de saúde por causa das complicações. Conforme Simone, as entrevistadas relataram que houve discriminação, julgamento de valor e falta de atenção e atendimento inadequado pelos profissionais de saúde. Em apenas duas situações a atenção recebida foi classificada como boa e adequada. Porém, na opinião delas, os profissionais fingiram desconhecer que se tratava de um aborto provocado.

Entre as razões determinantes para a interrupção da gestação, a mais apontada foi a situação econômica. As mulheres, que em sua maioria classificaram sua situação como péssima ou ruim, disseram que a chegada de uma criança altera os padrões de consumo familiar, elevando gastos e despesas. A maior parte das entrevistadas não trabalhava quando engravidaram pela primeira vez.

Outro fator é a instabilidade do relacionamento. Entre as 44 gestações, 19 aconteceram quando as mulheres moravam com o parceiro. Dessas, seis foram interrompidas. Das outras 25, que ocorreram quando o casal estava separado, 16 terminaram em aborto.

A opção pelo procedimento, em geral, foi compartilhada com amigos e familiares. “A decisão não foi tomada de maneira isolada, ou seja, essas mulheres compartilharam com outras pessoas do seu convívio a sua decisão”, esclarece a pesquisadora. “Isso mostra que a prática do aborto não é individualizada, mas um processo que envolve familiares, amigos e o próprio parceiro e esses, na maioria das vezes, exercem uma grande influência na decisão”.

De todas as entrevistadas, apenas uma não contou para ninguém sobre a gravidez que acabou sendo abortada. E em três dos casos elas também não podiam contar com o parceiro devido à instabilidade do relacionamento e ao fato deles rejeitarem a gravidez. A rejeição, segundo a pesquisadora, tinha causas financeiras ou a própria imaturidade para a paternidade. Segundo os relatos, alguns homens também se negaram a se posicionar quanto ao aborto, deixando a decisão por conta e risco da parceira.

Simone também questionou suas entrevistadas quanto aos métodos contraceptivos. A média de idade da primeira relação sexual dessas mulheres é 14 anos, quando a maioria não utilizou nenhum tipo de anticoncepcional. Das 16 ouvidas, cinco disseram desconhecer esses métodos – um número significativo se forem consideradas as informações disseminadas e campanhas. “Isso mostra a vulnerabilidade dessas mulheres em relação a uma gravidez indesejada e ao aborto, bem como a infecção por doenças sexualmente transmissíveis”.

Questionadas sobre as informações recebidas sobre métodos contraceptivos, a maior parte respondeu que foi em busca por conta própria; outras citaram o intermédio de profissionais de saúde, amigos, do próprio parceiro ou da escola. Perguntadas sobre a facilidade ou dificuldade para evitar a gravidez, apenas uma relatou ser difícil devido ao esquecimento em tomar a pílula. “Notamos que a utilização dos métodos não depende apenas da informação sobre a sua existência, mas também da sua adequação ao corpo e ao estilo de vida dessa mulher”.

Segundo um relatório da Federação Internacional de Planejamento Familiar, divulgado há dois anos, 70 mil mulheres morrem a cada ano por causa de complicações de abortamentos. As maiores vítimas são as mais pobres e adolescentes. De todos os abortos inseguros, apenas 4% são feitos em países ricos.

Em 2005, no Brasil, houve 250.447 internações no SUS devido a gestações interrompidas de maneira insegura. Faltam dados quanto ao número de mortalidade, embora se acredite que corresponda a 10% das mortes maternas. De toda forma, é um número difícil de ser calculado. Afinal, as hemorragias e infecções generalizadas citadas em certidões de óbitos muitas vezes maqueiam a verdadeira causa da morte.

Mortalidade por abortamento é duas vezes maior entre negras

O aborto inseguro evidencia as diferenças sócio-econômicas, culturais e regionais diante da mesma prática ilegal. Mulheres com melhores condições financeiras, geralmente nos grandes centros urbanos, têm acesso aos métodos e a clínicas de abortamento ilegais de maior higiene e cuidado. Já as mais carentes – que é a maioria da população feminina brasileira – recorrem aos métodos mais perigosos, com pouca precaução, resultando num alto índice de agravos à saúde. Entre as negras, a situação é pior: o risco de morte por aborto inseguro é duas vezes e meia maior. Esta é uma das constatações da pesquisa Magnitude do aborto no Brasil: aspectos epidemiológicos e socioculturais, realizada há dois anos pelo Ipas, uma organização não-governamental que trabalha há três décadas para reduzir o número de mortes e danos físicos associados a abortamentos, em parceria com o Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

O documento pode ser acessado pelo link.

 

 

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