Ambiente

O medo em Nova Ipixuna, onde os justos não têm vez

Acusado de mandar matar extrativistas Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo está livre. No assentamento, testemunhas vivem com medo

Casal participou da criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna, no Pará <span>(Foto Felipe Milanez/Reuters/Latinstock)</span>Manifestantes protestam em frente ao Fórum de Marabá contra o resultado do julgamento <span>(Foto (CC BY-SA) Fora do Eixo 
)</span>Madeireira embargada pelo Ibama em Nova Ipixuna depois do assassinato dos ambientalistas: comércio ilegal <span>(Foto Nelson Feitosa/Divulgação/Ibama)</span>Fotos de Dorothy Stang e Chico Mendes enfeitam uma das paredes externas da casa de José Cláudio e Maria do Espírito Santo <span>(Foto Paulo Padilha)</span>Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria do Espírito Santo, continua recebendo ameaças de morte e abandonou a cidade <span>(Foto (CC BY-CA) Fora do Eixo)</span>

Nilton José Ferreira de Lima morava havia seis meses no assentamento Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna, no Pará. Em 24 de maio de 2011, estava em uma das estradas vicinais do lugar, onde consertava uma cerca. “Eu estava trabalhando e chegou um velhinho, o seu Zé, e começou a conversar comigo.” Perto das 8h, uma moto vermelha parou, com motorista e garupa. O motorista perguntou onde era a saída para o Porto do Barroso. Seu Zé explicou. A moto disparou, e naquele momento a vida de Nilton começou a mudar.

Na hora do almoço soube que Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo, casal de extrativistas que morava no assentamento, haviam sido emboscados e assassinados a tiros de escopeta, perto das 8h, a sete quilômetros de onde ele consertava a cerca. Não conhecia o casal, mas ligou a cena da moto a uma conversa no domingo anterior, no Bar do Esquinão, que pertencia à sua sogra. O interlocutor era a pessoa que dirigia a moto vermelha. Nilton teve medo.

José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva participaram da criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Praialta-Piranheira. A ideia original do projeto era encontrar meios para que assentados vivessem na e da floresta, sem agredi-la. O sociólogo Raimundo Gomes, do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp) de Marabá, trabalhou na criação do assentamento, em 1997. “Ainda vivíamos o legado de Chico Mendes. Defendíamos a alternativa, para os pequenos, de viverem dos recursos múltiplos da floresta, e não de derrubá-la para transformar em pastagem.”

Uma cartaz com a frase “Chico Mendes Vive” e uma foto do líder ambientalista assassinado em 1988 enfeita a entrada da casa de madeira de Zé Cláudio e Maria, abandonada desde o crime. Proporcionar renda a partir do extrativismo dos frutos da floresta não era algo estranho à região, segundo Raimundo. Havia plantios consorciados entre os rios Praialta e Piranheira. E coleta de frutos na mata: castanha, açaí, cupuaçu, bacaba, óleo de copaíba e andiroba. Mas a ideia de sobreviver assim estava longe de ser consenso na região.

Não derrubem

“Antes de eles chegarem, antes do projeto, a gente tinha nosso negócio à vontade. Tínhamos paz”, conta João Nascimento, que vive na área desde 1985. “Depois entrou madeireiro, chegou o carvão, começou a perseguição de Zé Cláudio a todo mundo para não derrubar, para não vender árvore. Ficou uma situação difícil. Fome, gente não passa porque planta para sobreviver. Mas dinheiro ficou difícil.” Havia desentendimentos entre o casal e os assentados. João vendia madeira. Uma castanheira, R$ 400. “Mas ainda tem floresta em quatro de meus dez alqueires”, diz. Ele reclama que Zé Cláudio ofendia as pessoas, mas admite: “Eles defendiam a natureza, a obrigação deles era essa mesmo”.

No dia 27 de abril de 2011, Zé Cláudio fez uma palestra no TEDx Amazônia. Disse que quando o Projeto de Assentamento Extrativista foi criado possuía 85% de cobertura nativa. E, com a chegada das madeireiras e das guseiras a Marabá, restava pouco mais de 20% dessa cobertura. “É um desastre para quem vive do extrativismo como eu, castanheiro desde os 7 anos. Vivo da floresta, protejo a floresta de todo jeito. Por isso, eu vivo com a bala na cabeça a qualquer hora”, avisava Zé.

Nilton não sabia de nada disso quando decidiu sair do assentamento, naquele maio. Foi embora por ter lembrado do motorista da moto, com quem havia conversado no Bar do Esquinão, e ligado o desconhecido ao assassinato. Naquela mesma semana, foi para Jacundá, a 55 quilômetros de Nova Ipixuna. Três dias depois, a Polícia Federal o encontrou lá. Queria seu depoimento na investigação.

No domingo 22 de maio Nilton estava no Esquinão, a dois quilômetros do local do crime. Dois homens de moto encostam no bar. Era uma motocicleta Honda Bros vermelha, sem placa. “O moreno não deu muito o rosto para a gente ver. Mas o outro conversou bastante comigo. Eu estava falando com meus amigos sobre meu tornozelo. Estava com dois meses que eu tinha fraturado o tornozelo. E ele entrou no assunto. Disse que tinha fraturado também uma canela.”

O nome do motorista, Nilton soube depois: Lindonjonson Silva Rocha. Desconhecido na região, ele perguntava detalhes sobre o traçado e para onde levavam as estradas da localidade. “Fiquei olhando bastante para ele. Foi assim que identifiquei o rosto, o corpo todo, e pude fazer a foto falada.” Era isso que a polícia queria: “Eles conseguiram rastrear a identidade do Lindonjonson e me mostraram. E perguntaram se era parecido com aquele cara. Eu respondi: ‘Parecido não, é esse cara mesmo’. O delegado de Belém falou da fratura na canela do cara. E a polícia foi ajuntando as peças”.

O testemunho de Nilton quase dois anos depois, no Tribunal do Júri de Marabá, nos dias 3 e 4 de abril, foi fundamental para a condenação de Lindonjonson. Seu depoimento colocou o assassino na cena do crime, enquanto a defesa argumentava que ele estava, na verdade, em Novo Repartimento, onde os pais moram e onde ele morava também. Mas por que Lindonjonson teria saído do outro lado do Rio Tocantins, do outro lado do Lago de Tucuruí, para matar duas pessoas em Nova Ipixuna? Aqui entra a outra peça que a polícia juntou durante a investigação: o irmão de Lindonjonson, José Rodrigues Moreira, acusado de ser o mandante do crime.

José Rodrigues vendeu suas terras em Novo Repartimento, onde vive sua família, por R$ 130 mil. E comprou, por R$ 100 mil, um lote no PAE Praialta-Piranheira, mais perto de Marabá. Queria recomeçar a vida no lugar onde sua irmã já morava. E iniciou uma criação de gado, 130 cabeças. Formar fazendas de gado dentro contraria a vocação do PAE. As circunstâncias em que ele comprou as terras, dentro de um assentamento em que não podem ser compradas nem vendidas, serão apuradas em um inquérito do Ministério Público Federal. Além disso, ele foi avisado pelos vendedores – e, de acordo com testemunhas, pela própria Maria – que algumas pessoas viviam no local. No inquérito e no julgamento, José Rodrigues diz que não pagou pelas terras, e sim pelas benfeitorias – embora não houvesse, de acordo com posseiros que moravam nos lotes, benfeitoria alguma.

A história desses lotes, no entanto, tem outra versão. Em 25 de maio de 2005, Maria do Espírito Santo Silva, à época presidenta da Associação do Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta-Piranheira, encaminhou ofício à então Superintendente do Incra de Marabá, Bernadete Ten Caten, com a denúncia da compra ilegal, naquela data, por parte de Neusa Maria Santis (cartorária de Marabá), de uma área no interior do referido projeto de assentamento. Segundo documento detalhado anexo ao ofício, Neusa Santis, para garantir o controle da área, estava utilizando “laranjas” e todos haviam sido ilegalmente assentados pelo Incra e recebido créditos. A denúncia foi feita pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura e pela Comissão Pastoral da Terra, agora em março, ao Ministério Público Federal do Pará.

No lote comprado pela sogra de José Rodrigues havia posseiros. Francisco Tadeu Vaz e Silva, o Tadeu, era um deles. Havia limpado o terreno, plantado arroz, mandioca, pepinos. Queria morar ali e preparava a terra para receber o restante da família. Ficou até o dia em que chegaram a Polícia Civil, José Rodrigues e um fazendeiro chamado Gilzão para expulsá-lo, sem mandado algum de reintegração e nenhuma denúncia contra ele. Pegou as coisas, saiu levado no carro da polícia. Negociou com José Rodrigues receber R$ 3 mil pelo trabalho que havia feito no lote, mas nunca recebeu. Zequinha, que era posseiro em outro pedaço do lote, teve sua casa queimada. “Ele era acusado de pedofilia contra a filha de 12 anos”, diz José Rodrigues. “Por isso, botei fogo no barraco.”

O terceiro posseiro era Marabá, irmão de Zé Cláudio. Quando souberam que os três haviam sido expulsos, Maria e Zé Cláudio os orientaram a voltar. E eles voltaram. “Isso não causou um sentimento de injustiça no senhor?”, perguntou o juiz Murilo Lemos Simão a José Rodrigues, durante o inquérito. “Não, senhor. Entreguei a Deus. Fiquei esperando pela justiça de Deus e pelos homens aqui da Terra.”

Tadeu afirmou, no julgamento, ter ouvido várias ameaças ao casal, por parte de José Rodrigues. “Ele dizia que podia até perder a terra, mas que eles iam pagar. Dizia que a batata deles estava assando.” José Rodrigues nega. “Sou pessoa de paz, sou trabalhador.” O Conselho do Júri de Marabá acreditou nele. José Rodrigues foi absolvido de ser o mandante do assassinato de José Cláudio e Maria do Espírito Santo. Seu irmão Lindonjonson foi condenado a 42 anos de prisão. Alberto Lopes do Nascimento foi condenado a 45. A orelha de Zé Cláudio foi cortada depois dos tiros, enquanto ele ainda vivia, e o júri concluiu que quem fez isso foi Alberto – contra quem menos havia provas no inquérito.

O júri concluiu que as mortes aconteceram pela disputa da terra. E o juiz atribuiu aos mortos a responsabilidade pelo seu assassinato. “O comportamento da vítima contribuiu, de certa maneira, para o crime, pois, conforme declarado em plenário pela testemunha José Maria, a vítima enfrentou o irmão do acusado Lindonjonson, o corréu José Rodrigues Moreira, tentando fazer justiça pelas próprias mãos, utilizando terceiros (posseiros/sem-terra) para impedir o corréu de ter a posse de um imóvel rural, acarretando assim o agravamento do conflito fundiário, quando a vítima poderia ter procurado o apoio das autoridades constituídas para acionar na Justiça a ação do corréu”, escreveu. Ignorou, assim, todos os registros de que as vítimas, não poucas vezes, recorreram a autoridades constituídas contra as ilegalidades no assentamento.

No dia 14 de dezembro passado, o Incra incluiu a esposa de José Rodrigues, Antônia Nery de Sousza (com “sz” mesmo) na lista de beneficiados pela reforma agrária. Assentou Antônia Nery no PAE Praialta-Piranheira – embora o órgão tenha argumentado depois, em nota à imprensa de 20 de fevereiro, que o processo administrativo em questão não está concluído: “Embora a sra. Antonia Nery, na condição de titular requerente da regularização, não esteja arrolada no processo criminal, a Superintendência Regional do Incra de Marabá identificou a situação de impedimento do cônjuge, sr. José Rodrigues Moreira. A partir dessa identificação, no dia 20 de fevereiro de 2013 encaminhou o processo administrativo à Procuradoria Federal Especializada para ajuizamento de ação judicial visando a retomada do imóvel ocupado pela sra. Antonia Nery”.

Destino incerto

A história não se encerra com o julgamento dos dias 3 e 4 de abril. O Ministério Público recorreu contra a absolvição de José Rodrigues, e os advogados de Lindonjonson e Alberto Lemos, contra suas condenações. A situação das terras, no assentamento, está sob investigação do Incra. Em 22 de março de 2013, oito anos depois da denúncia de Maria do Espírito Santo e quase dois depois de sua morte, o órgão determinou a constituição de um grupo de trabalho para realizar uma supervisão no PAE Paialta-Piranheira, a fim de verificar irregularidades na ocupação. O grupo tem 60 dias para apresentar relatório.

José Rodrigues, em entrevista na semana seguinte ao julgamento, disse que vai voltar para lá. Francisco Tadeu vive em outro estado desde o assassinato. A família de Zé Cláudio – sua mãe, irmãos e irmãs – abandonou o assentamento depois do crime, por medo. A mãe e irmãs moram, de favor, em uma casa na periferia de Marabá. Mas querem reabrir a casa onde viviam Zé Cláudio e Maria e criar uma escola de educação ambiental.

Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, saiu da cidade. Já teve seu cachorro morto a tiros, recebeu bilhetes para se calar, recados para tomar cuidado. “Recebi ameaças dizendo que iam varrer minha família da região”, conta. Laísa quer voltar para casa, com proteção do governo. Sabe que poderá encontrar, no assentamento, o acusado de matar sua irmã. E que, a qualquer fiscalização do Ibama sobre madeireiros e carvoarias, se dirá no assentamento: “Foi Laísa quem denunciou”. Se o Incra não confirmar a homologação de Ana Nery como assentada em Praialta-Piranheira, em que situação fica Laísa? E se homologar? José Rondon, seu marido, permanece no lote do casal, cuida da floresta, planta árvores e alimento. “Não saio antes de acabar a colheita da andiroba”, disse a quem lhe sugere passar um tempo fora.

E Nilton? “Não posso voltar para casa. Eu estava confiando na lei. Mas o júri não fez o trabalho que era para ser… O mandante está solto. Minha vida está em mais risco.” Nilton não é ativista nem ambientalista. “Fui depor porque eu morava lá e achei aquela morte muito cruel. Uns bandidos daqueles não podem estar soltos, porque a mesma coisa que eles fizeram lá podem fazer a outra família. Se todo brasileiro chegasse a denunciar… Mas quem vai ter coragem de depor para alguém, se não tem Justiça aqui?”