Um camponês a estragar a paisagem

Populações escorraçadas de suas terras na China contemporânea compõem as maiores migrações da história da humanidade

Exclusão em Xangai. Nem todos participam da divisão do bolo (Foto:ly Song/Reuters)

“Areia dispersa”, assim são conhecidos na China os 200 milhões de camponeses que, a cada ano, deixam seu município em busca de melhores condições de vida – poucos conseguem. Literalmente escorraçados de seus lares e terras de cultivo por causa da desaceleração da economia, ou de ações malévolas de autoridades corruptas para facilitar a outorga de terras a grandes empresas, alguns dos mais afortunados conseguem emprego em minas subterrâneas, onde fazem trabalhos extenuantes por menos de ­R$ 1­ por dia. Outros, na província de Henan, vendem seu sangue até três vezes por dia a clínicas, hospitais e bancos de sangue.

A maioria se amontoa em barracos miseráveis na periferia das grandes cidades, fora das vistas da população urbana que está inserida no dinamismo estonteante do chamado milagre econômico chinês. Dos que trabalham nas minas, 3 mil morrem por ano em deslizamentos e soterramentos, a única ocasião em que a mídia se dá conta de sua existência.

Do total, 130 milhões mudam não somente de município, mas deixam também sua província natal, e centenas de milhares saíram do país, dos quais 55 mil moram, por exemplo, em Moscou, igualmente em barracos miseráveis. A saga dessas migrações em massa, as maiores da história da espécie humana, é relatada no livro Scattered Sand – The History of China’s Rural Migrants (Areia Dispersa – A História dos Migrantes Rurais da China), lançado em inglês, em agosto último, em Londres e Nova York. A autora, Hsiao-Hung Pai, é uma jornalista­ nascida em Taiwan em 1968 e radicada na Grã-Bretanha desde 1991.

Como ela descende de uma família que fugiu da China comunista, talvez se pudesse alegar que seu livro é produto de um reacionarismo ressentido. No entanto, foi editado pela Verso, editora que publica somente livros de autores esquerdistas, na quase totalidade marxistas. Essa jornalista colabora com o jornal progressista inglês The Guardian, uma voz dissonante do coro dos contentes do pensamento único neoliberal. Ela é autora do livro que resultou no filme Fantasmas, de 2006, disponível nas locadoras brasileiras, que relata a vida dos “trabalhadores fantasmas”, isto é, sem registro nem contrato.

Os 200 milhões de migrantes constituem um terço da população economicamente ativa da China, mas ganham no máximo metade do salário mais baixo entre os trabalhadores registrados. Não têm acesso à saúde pública, ou a qualquer tipo de sistema de saúde, e também seus filhos não têm acesso à educação. As mineradoras, indústrias e construtoras em que trabalham não os contratam formalmente, não garantem condições de segurança do trabalho e muitas vezes deixam de pagar os salários desses não registrados.

Não apenas o confisco de suas terras para serem outorgadas a grandes empresas os leva a abandonar municípios, províncias e até o país. Um dos grandes problemas é a inexistência de saúde pública no campo. Para pagar os caros serviços médicos privados prestados a eles e a seus parentes, os camponeses têm de migrar em busca de trabalhos que lhes rendam mais dinheiro do que nos precários serviços que podem encontrar em suas aldeias originais. Nas cidades, não são considerados cidadãos, pois continuam tendo registro de residência rural, que não garante tantos direitos quanto o de residência urbana.

Talvez um dos piores lados da situação desses migrantes é que eles não contam com nenhuma simpatia das autoridades ou das classes médias urbanas, que os encaram como gente ignorante e incompetente, incapaz de garantir a própria sobrevivência, que enfeia a paisagem das cidades – isso nos raros casos em que as autoridades ou as pessoas das classes médias tomam conhecimento de sua existência.