A América Latina se move

Relatório detecta crescimento da classe média, destaca políticas públicas, mas lembra que região ainda é vulnerável

Relatório detecta crescimento da classe média, destaca políticas públicas, mas lembra que região ainda é vulnerável (Foto:Agência Brasil)

A transformação social obser­­vada na Amé­rica Latina e Caribe nos últimos anos, com o crescimento da classe média na região, foi medida agora pelo Banco Mundial (Bird). De acordo com trabalho divulgado em novembro, essa fatia da população era formada, em 2003, por 103 milhões de pessoas e aumentou para 152 milhões em 2009. Jamais houve mobilidade social tão intensa. Dos 17 países analisados, os destaques são Brasil, que apresentou aumento da classe média de 40% na última década, Colômbia (54%) e México (17%).

“O relatório aponta aumento de aproximadamente 50% da classe média latino-americana e caribenha. O mundo quer entender como isso aconteceu na região e como esse fenômeno se sucedeu no Brasil, onde as mudanças foram maiores”, afirmou a diretora do Bird para o Brasil, Debora Wetzel. Segundo o estudo, o aumento é resultado de políticas públicas governamentais voltadas para a redução das desigualdades, melhoria do nível educacional dessas pessoas, maior produtividade dos países, aumento do número de empregos no setor formal e maior oferta de mão de obra qualificada.

Também foram preponderantes o maior número de pessoas vivendo em áreas urbanas, a elevação da presença feminina no mercado de trabalho e a redução do tamanho das famílias. Mas há um porém. De acordo com o trabalho do Banco Mundial, parcela considerável das pessoas que subiram para a classe média corre o risco de retroagir nos próximos anos, uma vez que vive em ambiente de instabilidade. Isso acontece pelo fato de os empregos criados serem de curta duração, sujeitos a rotatividade e a anúncios de fechamento de vagas por parte de indústrias e outros setores, em razão de crises econômicas.

O pesquisador Francisco ­Ferrei­­ra, um dos autores do trabalho, explica que levou o Banco Mundial a pensar num estudo sobre mobilidade da classe média foi o fato de que, na última década, houve crescimento do PIB per capita na América­ Latina e, em paralelo a esse cresci­mento, a redução da pobreza em um quarto da população. Para se ter ideia, o índice Gini – que mede o grau de desigualdade a partir da renda per capita das populações –, que era 0,530 em 1990, foi reduzido ­para 0,497 na América Latina e Caribe em 2010. E o percentual de pobres na ­região caiu de 44% para 30% da população.

“Por trás disso tem de haver mudanças­ sociais importantes. Houve também a­ queda da desigualdade em 12 dos 15 ­países pesquisados em 5 pontos do índice Gini”, enfatizou Ferreira. Segundo o pesquisador, está acontecendo um processo inédito, mas que provoca novos desafios e perguntas. “Por que alguns saíram da pobreza e outros não? Quem saiu e quem permaneceu? Todo mundo que saiu da pobreza entrou na classe média?”

Ferreira diz que existe relação entre essa mobilidade populacional observada nos últimos anos e as várias políticas públicas. “Você vê os gastos com previdência e assistência social juntos e pode achar que essa correlação é quase zero com a mobilidade social dos países. Mas quando se olha para alguns instrumentos específicos, não só incluindo experiências como o Bolsa Família, mas programas de incentivo à produtividade, por exemplo, aí você vê as pessoas saindo da pobreza, numa correlação positiva e bastante ­alta”, acentua.

Já na avaliação do secretário executivo da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, Ricardo Paes de Barros, o relatório chama a atenção para um ponto fundamental para os próximos estudos sobre comportamento e ascensão da população brasileira. “Sempre associamos mudança na distribuição de renda com redução da pobreza e redução no grau de desigualdade. Só que as transformações na distribuição de renda na América Latina e no Brasil são mais ricas do que isso, e esse relatório mostra, justamente, que existe mais do que medidas de pobreza e medidas de desigualdade por trás de uma distribuição de renda. Mostra que as mudanças têm a ver com esse grupo vulnerável e com essa classe média que é bem descolada”, disse.

Na avaliação de Paes de Barros, no caso do Brasil, programas sociais como o Bolsa Família – que foram tão importantes para tirar as pessoas da extrema pobreza – não foram importantes para fazer com que as pessoas pobres subissem para a classe média. “Vários fatores aconteceram, como o crescimento do emprego formal no Brasil. Essa nova classe média tem mais a ver com o trabalho e pouco a ver com a transferência de renda. O relatório ajuda a consolidar essa visão.”

Outra percepção da nova classe média que chamou a atenção dos pesquisadores é a falta de sintonia ou capacidade de integração com políticas de melhoria dos serviços públicos e das populações mais pobres. “Em parte, esperávamos uma classe média de vanguarda, como um grupo que viesse para arejar a elite com valores mais modernos, comportamentos mais adequados. Mas o que se vê são comportamentos intermediários entre a classe baixa e a classe alta, comportamentos que podem ser explicados pelo nível de ascensão de renda, e portanto sem vanguarda de valores, de atitudes, percepções”, ressalta.

Segundo o secretário executivo da SAE, é preciso, agora, saber se um ­país com uma classe média grande é forte ao impacto de choques externos, qual o impacto dessa classe média sobre o ­nível de endividamento e sobre a inflação dos países e como essa classe média quer ­cooperar com o Estado.

“Tomamos conhecimento que essa classe­ média é mais exigente, mas ela vai buscar segregação espacial dos serviços públicos ou vai lutar pela melhoria dos serviços públicos em geral? Qual a relação dessa classe média com a pobreza? É formada por pessoas que pagam impostos com prazer, desde que sejam gastos para produzir serviços e educação para a população pobre? Está disposta a praticar uma certa benevolência em relação à população pobre? Tudo isso será importante para a continuidade da queda da pobreza e para as novas políticas a serem definidas.”

O presidente do Instituto de Pesquisa­ Econômica Aplicada (Ipea), Mar­celo ­Neri, enfatiza a melhoria na edu­cação das pessoas que apresentaram essa mobili­­dade. De acordo com Neri, os resul­tados são consequên­cia de uma década de ­inclusão na escola, na renda e no mer­cado de trabalho. “As políticas de governo contribuíram para colocar as crianças na escola, as pessoas conseguirem em­prego e as famílias subirem na vida. Daqui por diante, nos falta uma década de quali­dade de educação, medida por proficiência. O ­mote da próxima década não é dar aos ­pobres o mercado, o que fizemos até aqui. Mas dar o Estado e os mercados aos pobres e a essa nova classe média. E a educação é o melhor passaporte para o mercado de trabalho, que é onde a renda das pessoas é decidida a médio e a longo prazo.”

Trabalho divulgado dias antes do ­relatório do Bird pela SAE, com ­base na Pesquisa Nacional por Amostra de ­Domicílios (Pnad), do IBGE, mostrou que, no Brasil, do total dos que integram hoje a classe média, 35% (ou 36 ­milhões de pessoas) ingressaram nessa­ ­camada econômica nos últimos dez anos. Desses­ novos integrantes da classe­ média ­brasileira – ou seja, desses 36 ­milhões de pessoas –, 75% são negros e 25% brancos. Os cruzamentos dos dados dos dois ­trabalhos vão ser usados para a formulação de novos estudos.