O voo do dragão

A China tenta seguir a trilha do crescimento. O desafio é não deixar-se degradar pelo insustentável e pela corrupção, nem envelhecer antes de enriquecer

Futuro e tradição. A China continua sendo o país das bicicletas, mas também domina a tecnologia que leva homens ao espaço (Foto:David Gray/Reuters)

Novembro foi mês da Chin­a e do Partido Comu­nista Chinês (PCCh). Na­ imprensa mundial, ­renderam mais assuntos do que as eleições nos Estados Unidos, as crises na Europa e a recessão no Japão. Tudo por causa da mudança do governo central, iniciada em novembro com a ­nomeação dos sete novos integrantes da executiva do partido e a ser concretizada com a confirmação do presidente e do ­primeiro-ministro em março de 2013, na reunião do Congresso Nacional do Povo. Xi Jinping, agora secretário-geral do partido, deve presidir também a grande­ ­nação do Oriente, com mandato de cinco anos, renovável por mais cinco.

Migração chinesa compromete cidades (Ly Song/Reuters)Também nesta edição

  • Populações escorraçadas de suas terras na China contemporânea compõem as maiores migrações da história da humanidade.
    Por Renato Pompeu
    (Foto: Ly Song/ Reuters)

O alvoroço tem a ver com a extraordinária importância econômica e comercial adquirida pela China nos últimos dez anos, período que coincide com o governo de Hu Jintao e Wen Jiabao, presidente e primeiro-ministro em fim de mandato. Segunda maior economia, perto de se tornar a primeira no ranking do PIB mundial, é também a maior exportadora, com 12% do comércio internacional, e a segunda maior importadora – devendo alcançar a condição de número um em breve.

Para o Brasil, essa situação já chegou: é a maior freguesa dos produtos brasileiros, nossa principal fornecedora e logo deve se tornar também a maior investidora: segundo estudo do Conselho Empresarial Brasil-China, há 60 projetos de investimento de empresas chinesas, dos quais 39 estão em andamento, totali­zando US$ 24 bilhões.

Até 2014 esse montante pode passar de US$ 40 bilhões, se os governos federal, estaduais e das cidades do Brasil e grandes empresas nacionais desenvolverem iniciativas com esse objetivo. A China é o país com a maior reserva cambial do mundo, mais de US$ 3 trilhões – quase dez vezes a do Brasil –, e precisa aplicar parte dessa fortuna-papel em bens reais: indústrias, minas, portos, navios, empresas agropecuárias, ferrovias, hotéis, shoppings, aeroportos etc.

O mundo inteiro disputa esse dinheiro e cobiça aquele imenso mercado consumidor, que de 2009 para cá passou a ser a tábua de salvação de muitos países, incluindo o Brasil. Vender para os chineses será cada vez mais o sonho de consumo de muitas empresas, porque nos próximos anos o país pretende aumentar seu consumo interno, dos atuais 35% do PIB para 55%. Em dinheiro, será adicionado ao total comprado algo como US$ 1,6 trilhão, o equivalente ao que importa anualmente.

Boa parte do salto do superávit na balança comercial brasileira nos anos 2000 tem a ver com as compras crescentes que a China faz, de minério de ferro, soja, celulose, carne de frango etc. Apesar disso, as mercadorias brasileiras representam menos de 2% de tudo o que a China compra do mundo, o que significa que o Brasil ainda tem muito espaço para crescer ali.

Avanços e degradações

Essa imensa expansão do consumo pretendida pelo gigante oriental faz parte de uma mudança radical da política econômica que vigorou nos últimos 30 anos, de crescimento por meio principalmente de exportações de produtos fabricados com mão de obra intensiva. Em 1980, um conjunto de iniciativas conhecidas como Reformas (econômicas, políticas, culturais) e Abertura para o Exterior iniciou a transformação do país muito pobre e atrasado em maior economia mundial até 2020.

Nesse período, a mortalidade de crianças antes de completar 1 ano caiu de 190 para 20 para cada mil nascidas vivas. O analfabetismo afeta menos de 5% dos adultos, cuja expectativa de vida dobrou. De 1980 a 2005, a China tirou da miséria 627 milhões de pessoas. Hoje se discute em várias instituições de pesquisa no mundo qual é o tamanho da classe média, se 400 milhões ou 500 milhões de pessoas. Outra polêmica é se já passariam de 10 milhões os indivíduos com mais de US$ 1 milhão na conta bancária.

Os números são impactantes e nem sempre confiáveis e, para que se tenha uma ideia da importância da economia do país para o mundo, se o crescimento chinês for de 7% ao ano, nos próximos oito anos dobrará o tamanho do PIB.

Toda essa expansão teve um custo ambiental elevado, e a população hoje já não aceita pagar por ele com a própria saúde. A poluição aérea visível é impressionante e seus efeitos são constatáveis: quase 25% das mortes devem-se a problemas respiratórios. A intensa contaminação de rios, lagos e águas subterrâneas é igualmente impressionante, porque além de tudo a água é escassa e sobram desertos e regiões semiáridas. A China, com 20% da população mundial, tem apenas 6% da água doce existente, daí sua condição de 121º lugar no ranking de água per capita e a dura realidade de racionamento em dois terços das cidades, segundo o Anuário 2010 do Ministério de Recursos Hídricos.

Essa realidade de desastre ambiental generalizado está mudando, por pressão popular, de técnicos, acadêmicos, da mídia e dos próprios burocratas, que se deram conta dos estragos causados pela lógica de crescer a qualquer custo.

Chama a atenção, nos discursos dos dirigentes chineses de alguns anos para cá, a preocupação ambiental, assim como com a necessidade de reduzir a desigualdade social – a população rural e do interior do país ganha um terço, em média, do que ganham os habitantes urbanos e da região litorânea. Essa parcela mais bem localizada representa cerca de 30% da população e, além do poder aquisitivo muito maior, tem maior acesso a saúde, educação, lazer, moradias melhores e, enfim, uma qualidade de vida muito superior à dos 70% restantes. É nessa parcela majoritária do povo chinês que residem os perigos ao futuro do desenvolvimento.

A imensa maioria desses mais de 900 milhões de pessoas sobrevive com as dificuldades imagináveis e passa todo tipo de privação, enquanto vê a parcela felizarda sendo estimulada a consumir e alcançar as benesses de quem tem mais dinheiro. Dadas as características e dimensões da crise mundial, se o crescimento chinês se mantiver em 7% será ótimo, mas serão inevitáveis o aumento do desemprego, a queda dos salários e a insatisfação de milhões de trabalhadores embalados pelo sonho chinês.

Sabendo-se que 4% de desemprego (taxa atual) representa 32 milhões de desempregados, pois cada ponto percentual são 8 milhões de pessoas sem rendimento, pode-se bem imaginar o potencial de agitação reservado para o futuro imediato.

(Foto: Aviões da brasileira Embraer serão montados em solo chinês: metade do PIB do país é resultado do comércio exterior)

O governo que está saindo bem que tentou minimizar os efeitos da ­crise mundial, iniciando a construção de 36 ­milhões de moradias (a previsão é ­concluí-las até 2015), acabando com os impostos agrí­colas e aumentando a proteção social ­(seguro-saúde, aposentadoria) nas ­regiões rurais. Além disso, conti­nuam os investimentos pesados em infraestrutura de transportes e de energia­ e os subsídios à produção de deter­minados alimentos (leite, por exemplo).

Entender a China não é fácil. Pela grandeza dos números, pela lógica em função do tempo, pela complexidade filosófica e por tantas outras variáveis. Muito dos princípios e valores nos quais o povo chinês se baseia para nortear suas ações deriva do que pregava Confúcio, há cerca de 2.500 anos. Quando o processo das Reformas entrou em crise, em 1992, foi preciso o líder político Deng Xiaoping, que articulara sua formulação no final da década de 1970, viajar o país em busca de apoio político para assegurar sua continuidade. Ele tinha 88 anos.

Como na época ele dizia que esse processo das Reformas deveria durar 100 anos, e passaram-se até agora apenas 30, quaisquer conclusões que se tirem a respeito dos seus resultados serão “prematuras”. Nesse caso, como avaliar o sucesso ou o fracasso do que a China está realizando?

Por exemplo, o controle de natalidade­. Implementado em 1980, quando a popula­ção aumentava mais de 12 milhões de habi­tantes por ano, ficou mundialmente conhe­cido como Política do Filho Único. Só podem ter mais de um filho casais de famílias da área rural e de etnias minoritárias, aos quais se permite ter dois. Acima desses limites, pagam multas. Essa política­ teria evitado um aumento da ­população da ordem de 300 milhões de pessoas.

Ou seja, atingiu o objetivo para o qual foi criada, é um sucesso. Em contrapartida, resultou em problemas de fertilidade para milhares de mulheres, que abortaram várias vezes, e em uma situação inversa, do ponto de vista demográfico: o crescimento populacional hoje é de menos de 1%. Com isso, a população caminha rapidamente para ampliar a taxa de pessoas mais velhas em comparação com a quantidade de mais jovens. Há quem diga que a China envelhecerá antes de enriquecer. Daí haver quem considere que essa política foi um fracasso…

Mudanças inevitáveis

Ao assumir o governo central da China em março de 2013, o presidente Xi Jinping e seu primeiro-ministro Li Keqiang terão de pôr em prática as mudanças iniciadas a partir da divulgação, em março de 2011, do 12º Plano Quinquenal. A principal mudança é justamente o redirecionamento do crescimento da economia para o mercado interno, por meio do consumo doméstico. Para que aconteça na proporção planejada, porém, será preciso garantir aumento real de salários e a liberação de recursos poupados, por meio da concessão de aposentadorias e pensões. Estima-se que a taxa de poupança alcance 50% do PIB. Parte desse dinheiro só chegará ao consumo, e à roda da economia, se houver garantia de renda à população idosa.

Ao mesmo tempo, o novo governo terá de continuar o esforço de reduzir as desigualdades sociais, em busca da sociedade harmoniosa citada nos discursos de Hu Jintao.

Crescer menos e para dentro, redirecionando os investimentos governamentais para as áreas rurais e a região centro-oeste, sofrendo redução das receitas de exportações e aumento dos gastos com importações, e junto com tudo isso lidar com as pressões internas e externas que virão de toda parte… É um desafio e tanto, ainda mais porque pegarão o mundo no contrapé, o inverso da situação com que seus antecessores lidaram nos dez anos que lhes couberam.

Mas talvez a mais difícil, de todas as mudanças estruturais a serem realizadas, seja o combate à corrupção. Wang Qishan, o novo secretário da Comissão Central de Controle Disciplinar do ­PCCh eleito em 15 de novembro, será o responsável por coordenar esse trabalho em nível nacional.

Hu Jintao, presidente da China e então secretário-geral do PCCh por ocasião da abertura do 18º Congresso, em 8 de novembro, citou 16 vezes a palavra “corrupção” em seu discurso, e foi fundo: para ele, o PCCh e o Estado chinês correm o risco de sucumbir, caso a corrupção não seja reduzida consideravelmente.

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