A graça do rúgbi

O esporte tido como violento e para homens é cada vez mais praticado por mulheres

Elas calçam as chuteiras e se levantam. Estão concentradas. Sabem o que as esperam: tackles, encontrões, arranhões nos joelhos, nos cotovelos. Seguem em frente, pensando só em conseguir ganhar mais esse jogo, o do título. Em campo, cada uma faz sua parte, conhece seu potencial, desconhece seu limite. Após algumas falhas e 14 minutos de jogo, vencem, pela sétima vez, o Campeonato Sul-Americano de Rúgbi. 

Treino da seleção feminina: duro, sem perder a ternura. 
(Foto: Felipe Araújo/AE)

São as jogadoras da Seleção Brasileira feminina de Sevens, que já vinham de um recente quinto lugar conquistado em fevereiro num torneio em Las Vegas, atrás apenas de seleções mais experientes – Canadá, Estados Unidos, Holanda e França. 

No Brasil, o rúgbi está longe de ser popular. As publicidades de uma marca esportiva até brincam com o quase anonimato da modalidade, que de fato tem crescido muito no país. Fora daqui, depois da Copa do Mundo de futebol e dos Jogos Olímpicos, o evento mais visto no planeta é a Copa do Mundo de Rúgbi.

No ano passado, a competição recebeu forte investimento em divulgação, apoiada em outras grandes chances de ganhar visibilidade. O Brasil participou dos Jogos Pan-Americanos e o esporte foi confirmado como modalidade olímpica – por enquanto só para as seleções masculinas. Mesmo assim, o Brasil tem meninas promissoras.

“O rúgbi tem tudo para chegar a um nível bom em campeonatos mundiais em cinco a oito anos”, estima Timothy Baines, ex-treinador de times femininos como o tradicional São Paulo Athletic Club (SPAC) e o universitário da Faculdade Cásper Líbero. Atualmente, as meninas têm um espaço na federação paulista para cuidar de assuntos como organização de campeonatos e divulgação.

Elas encaram o campo de treino com seriedade. Fazem de tudo: flexão, agachamento, tiros de corrida, desenvolvem exercícios próprios do esporte tão bem quanto os parceiros de time, mas sempre na proporção de suas características físicas. “As mulheres participam dos mesmos treinos que os colegas, embora se separem dos homens para fazer exercícios específicos em determinados momentos”, explica Justin Thornycroft, presidente do Rio Rúgbi FC. 

Onde tudo começou

Criada na Inglaterra, em uma cidadezinha que cedeu seu nome ao esporte, a brincadeira teve início ainda no século 19, quando um menino chamado William Webb Ellis, em uma partida de futebol, pegou a bola com as mãos e colocou-a na linha do gol do adversário. O esporte foi difundido entre os países colonizados por europeus, cresceu na Oceania, onde é potência, e na América do Sul. Chegou ao Brasil com o paulistano Charles Müller, que o trouxe na bagagem em 1894, junto com o futebol, ao voltar de seus estudos na Inglaterra, onde ambos eram praticados. 

Existem diversos clubes no Brasil – e a maioria conta com times femininos. O SPAC, da capital paulista, com sede próxima à Represa de Guarapiranga,  começou como iniciativa das jogadoras. “A Natasha (Olsen), jogadora do Pasteur Athlétique Club e sócia do SPAC, pediu permissão à administração do campo do clube”, conta Marjorie Yuri, jogadora do SPAC e do universitário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “No começo eram apenas cinco ou seis meninas, que traziam amigas de fora para inteirar a equipe.” Hoje, seis jogadoras do SPAC treinam pela Seleção Brasileira Feminina de Sevens.

A força feminina não se restringe a São Paulo. Em Pernambuco, o Recife Rugby Club (RRC) tem um time dono de vários títulos regionais. Renata Barros, jogadora dos Tubarões de Boa Viagem – como o clube é conhecido –, conta que, para formar a equipe atual, o RRC passou por muito perrengue. “Após meu primeiro torneio, em novembro de 2009, em Salvador, voltamos ao Recife Rugby com apenas duas meninas, já que uma estava lesionada, outra engravidou e a terceira foi fazer intercâmbio. No ano seguinte, treinei sozinha com o time masculino durante seis meses”, lamenta.

Com uma boa campanha de divulgação, treinador só para elas e muita dedicação nos treinos, as “tubaroas” terminaram 2009 com saldo positivo: campeãs do campeonato estadual, vice do Nordeste Sevens e sexto lugar no campeonato nacional, com 12 equipes. Em 2010, além de vencer a primeira edição do Circuito Feminino de Rúgbi do Nordeste, levaram a Taça Bronze do Nordeste Sevens. No ano passado, participaram de um torneio juvenil em Pernambuco contra times masculinos, por falta de um respaldo feminino por parte de outros clubes, e ganharam a segunda etapa do Circuito Feminino de Rugby do Nordeste.

Não conseguiram disputar o campeonato nacional por falta de apoio. “Fomos convocadas pela confederação, pois somos a equipe feminina mais ativa e com mais vitórias do Nordeste. Mas faltou patrocínio.” Mesmo sem recursos de publicidade, as meninas se viram. 

Venderam rifas e fizeram até calendário sensual para conseguir viajar e jogar. Um dos planos este ano é levar duas jogadoras à seletiva da seleção brasileira.

Fonte de crescimento

Para que o esporte atinja mais adeptos, muita coisa deve mudar. O crescimento do rúgbi está em duas frentes: nas universidades e entre as crianças, somadas a uma forte campanha de divulgação. Sócio-fundador do Instituto Rugby para Todos, Fabrício Kobashi acredita que o talento do brasileiro para os esportes é indiscutível. “A democratização da modalidade é essencial para o crescimento de nossas seleções no cenário internacional, mas esse trabalho precisa ter foco na qualidade e na cultura e ser de longo prazo.” 

Em Paraisópolis, zona sul de São Paulo, o projeto de Fabrício dá suporte a crianças da comunidade. A ideia partiu dele e de seu companheiro Maurício Draghi. Ambos jogam no Pasteur Athlétique Club. “Depois de termos a ideia do projeto, fomos conhecer o campo de futebol de Paraisópolis e seus responsáveis. Houve uma divulgação intensa nas escolas. Passamos de sala em sala mostrando o que é uma bola de rúgbi e conhecendo as crianças”, lembra Fabrício. No primeiro dia, mais de 70 apareceram. “Com o tempo, conseguimos voluntários dedicados e também apoiadores. Inicialmente, eram jogadores de rúgbi de diversos clubes de São Paulo.” 

“Hoje, o time se expandiunas áreas de psicologia, educação física, nutrição, medicina etc., e aparecem mais a cada mês”, acrescenta. E cerca de 400 crianças são atendidas. Os treinos são semanais e a garotada já mostra que a cultura do esporte foi bastante divulgada. Em 2010, na última etapa do Beach Rugby para Todos, modalidade jogada na areia e com apenas cinco jogadores em cada time, os Leões de Paraisópolis fizeram um jogo demonstrativo  e mostraram que o esporte tem tudo para ser grande. 

“Desde o início, o rúgbi e o projeto foram muito bem recebidos pelas crianças e por toda a comunidade. Introduzir uma nova cultura esportiva numa realidade dominada pelo futebol foi um enorme desafio. Valeu o esforço”, afirma Fabrício. Em novembro de 2011, as crianças viajaram para fazer um jogo de exibição no torneio uruguaio Valentin Martinez, promovido pelo Carrasco Polo Club, de Montevidéu. “Para muitos, foi a primeira viagem de avião e, para todos, a primeira para fora do país. Todos se divertiram, aprenderam sobre o rúgbi e seus lemas. O aprendizado é sempre o mais importante.”

Esporte universitário

O Instituto Rugby para Todos trabalha para aperfeiçoar e ampliar o atendimento dentro da unidade-piloto, em Paraisópolis. A visibilidade do projeto, porém, provoca novas demandas, como planos de alto rendimento, visando aos Jogos Olímpicos de 2016 e 2020, e a implementação do projeto em outros estados brasileiros. 

“Não se pode descartar a importância da categoria universitária”, aponta Marjorie. Segundo ela, o contato é também oportunidade de desenvolverem habilidades sociocognitivas negligenciadas pelo currículo de educação física das escolas. Além disso, o rúgbi tem grandes trunfos na coletividade e no trabalho em equipe.

Lilian Oliveira, estudante de Publicidade e Propaganda e jogadora do time universitário da Cásper Líbero, acredita na disseminação do esporte e dos seus valores no país. “O interesse e a curiosidade crescentes fomentam o surgimento de novos times e atletas em potencial.”

Inclusivo
O rúgbi aceita todos como são: barrigudinho, alto, atlético ou desengonçado. Cada posição é ocupada por um tipo de jogador. Na primeira linha acontece o maior contato físico. Nela ficam os pilares e hookers, que aguentam os impactos do scrum, uma típica cobrança de falta. Os mais fortes são requeridos.
Os jogadores mais rápidos ocupam as pontas, pois, quando a bola chegar até eles, precisam correr o suficiente para driblar jogadores com sidesteps e marcar o try, como é chamado o gol. Vale cinco pontos e dá o direito de chutar a bola em cima do H, formado pelas traves.
Os times têm sete jogadores, conhecidos como sevens, ou 15, chamados de union. A bola só pode ser passada para trás; para a frente é falta. Então cobra-se um scrum, penalidade em que ela é disputada com formação fixa de três ou oito jogadores. Quando a bola sai, é cobrado o line-out, ou lateral. Um jogador a lança entre as duas equipes, que ficam paralelas para recepcionar a oval. 

O arquiteto Victor Dariano, que jogou por muito tempo no time da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo da USP, confere a expansão. “A diferença é absurda do que era o rúgbi em 2004, quando comecei a jogar, e o que é hoje. Praticamente toda faculdade tem um time ou quer montar um. Nesse primeiro momento, é onde o esporte tem de crescer. Claro que não podemos nos esquecer da base de qualquer esporte, que são as crianças”, diz.

“Foi o cenário universitário que mais deu base dentro do Brasil. O que a gente mais encontra na Federação Paulista de Rugby é time universitário”, completa Vinicius Correia, também arquiteto.

Divulgar é preciso

Todos os times têm um jeitinho de atrair novos jogadores. No Rio de Janeiro, quarta-feira é dia de homens e mulheres do Rugby FC jogarem nas areias de Ipanema para chamar a atenção de quem passa por ali. “Além de atrair novos colegas, aproveitamos para desenvolver a parte física”, explica Justin Thornycroft, presidente do time. Justin observou o boom com o anúncio da entrada do esporte nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em 2016, e, para ele, o caminho é sem volta. “Os projetos sociais para levar o esporte para as comunidades estão ganhando força, mas vejo um crescimento mais sustentável nas equipes juvenis.” 

O mais importante do rúgbi, como observa, são os princípios, muito diferentes dos do futebol. “Respeito às autoridades e jogadores é, sem dúvida, uma lição importante para todo mundo. Nunca veremos um jogador xingar o árbitro e sair impune. União é outro fator importante. Sem a equipe, nada funciona, e uma pessoa não faz sua parte sem afetar o time todo”, explica o dirigente. É por isso que o rúgbi não tem “estrelinhas” em campo. “Estrela é quem cria a jogada para o resto da equipe completar.”