Escravos da ganância

Contra projeto que confisca posses de escravocratas, deputados ruralistas usam argumentos do século 19

Heinze: deputados em condições de escravos (Foto: Leonardo Prado/Ag. Câmara)

Não é preciso recorrer à literatura do Brasil colônia para lembrar o desdém dos coronéis para com o trabalho indecente praticado em suas propriedades. Os anais do Congresso Nacional registram discursos de algumas semanas atrás de dar vergonha a um país que busca a duras penas um lugar de destaque no cenário internacional. Alguns integrantes da bancada ruralista proferiram pérolas durante a votação da Proposta de Emenda à Constituição 438, a PEC do Trabalho Escravo, que determina o confisco de propriedades onde for flagrado o uso de mão de obra em situação análoga à escravidão.

“Se na minha propriedade eu matar alguém, tenho direito a defesa. Se eu tiver um bom advogado, não vou nem preso. Mas se eu der a um funcionário um trabalho que o fiscal do Trabalho vai colocar como análogo a escravo, provavelmente a minha esposa e os meus herdeiros vão ficar sem o imóvel, uma penalidade muito maior do que se eu tirar a vida de alguém”, disse o deputado federal Nelson Marquezelli (PTB-SP).

Seu colega Luiz Carlos Heinze (PP-RS) foi ainda mais dramático. No afã de argumentar que a lei é vaga, permitindo diferentes entendimentos, Heinze apelou. Reclamou que a falta de sanitários e chuveiros disponíveis para os trabalhadores, por exemplo, não pode ser tida como indício de trabalho degradante, pois muitos estabelecimentos não o possuem, citando inclusive a própria Câmara dos Deputados. “Para cada dez trabalhadores, tem de ter um banheiro e um chuveiro. Nesta Casa, onde trabalhamos, às vezes, até meia-noite, 2h da manhã, há três ou quatro vasos sanitários para 513 deputados. Isso aqui não é trabalho degradante, não é jornada exaustiva? Por que não vêm aqui prender e dizer que nós estamos num trabalho escravo?”, indagou o parlamentar em plenário.

A hipocrisia não se justifica. O conceito de trabalho em situação análoga à escravidão é muito bem definido pelo Código Penal e por organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E identifica-se em situações como ausência de alojamentos, água, comida em condições decentes, trabalho por dívida, retenção de documentos e privação de liberdade. O fato de não haver mais o comércio e o tráfico de pessoas como até o século 19 não deixa de tornar criminosa a exposição de seres humanos, ludibriados em seu local de origem, a situações indignas. 

Manobras futuras

A postura de parte da bancada do agronegócio foi um indício de que buscarão brechas possíveis nessa e em futuras leis que venham a apresentar. Mas não conseguiu evitar a aprovação da PEC, por 360 votos a favor (eram necessários 308). O acontecimento foi comemorado como mais um avanço na luta travada contra a escravidão contemporânea, na qual o Brasil é referência internacional. “Essa é a principal agenda política de direitos humanos. Não é uma agenda a mais, mas a principal agenda”, disse a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH).

A aprovação da PEC soma-se a conquistas como a consolidação dos Grupos Móveis de Fiscalização (envolvendo fiscais do Trabalho, procuradores e Polícia Federal), a criação em 2003 da “lista suja” de empresas e pessoas físicas flagradas com prática de escravidão em suas propriedades, a formação do pacto nacional que reúne órgãos do governo, entidades como Comissão Pastoral da Terra, Repórter Brasil, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e mais de duas centenas de empresas para identificar e coibir esse tipo de violação de direitos humanos em suas cadeias produtivas. Algumas empresas decididamente não querem ter o nome relacionado ao trabalho indecente.

De acordo com Mariana Parra, coordenadora de projetos de políticas públicas do Ethos, a via judicial para a erradicação do trabalho escravo no Brasil é ainda ineficiente. “Portanto, todas as iniciativas que possam inibir o uso desse tipo de mão de obra são de extrema importância”, defende. Mariana lembra que o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo agrega 250 empresas signatárias, o que representa quase 30% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.

Há dois anos, a rede varejista Marisa teve seu nome manchado quando a fiscalização identificou a prática de trabalho degradante em uma oficina de confecções de sua cadeia produtiva. Os empregados, bolivianos, não tinham carteira assinada e recebiam em média R$ 200. Apesar da repercussão negativa, em vez de desqualificar a ação de fiscalização, a empresa foi atrás de providências, iniciando um trabalho de auditoria própria para fiscalizar suas contratadas e subcontratadas. “Queremos e podemos usar a força que a Marisa tem junto ao seu grupo de fornecedores para uma conscientização de toda a cadeia produtiva”, disse Marília Parada, gerente-geral de recursos humanos da rede. 

“O consumidor não gosta de fazer nenhum tipo de contrato ou compra de um produto que possa ter origem em condições degradantes de trabalho. Na soja, nosso compromisso é muito forte. Nenhuma dessas grandes empresas compra nem financia propriedades que constem na lista suja do Ministério do Trabalho e Emprego”, afirmou Bernardo Pires, gerente de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que reúne as maiores exportadoras de soja do Brasil e signatária do pacto. 

Sociedade cobra veto ao código 
Veta, Dilma (Foto: Valter Campanato/Abr)A presidenta Dilma Rousseff contou com o respaldo de uma ampla mobilização social, e o Diário Oficial da União de 28 de maio publicou o texto do novo Código Florestal. Houve 12 vetos de Dilma e uma medida provisória que promove outras 32 alterações no texto aprovado pela Câmara. Os pontos modificados restituem boa parte do texto redigido no Senado e bloqueiam a possibilidade de consolidação de áreas exploradas indevidamente.
A presidenta optou por enfatizar que a nova legislação visa promover o uso sustentável da floresta “em harmonia com a promoção do desenvolvimento econômico”. 
E acrescentou uma série de parágrafos que abordam o compromisso comum de União, estados e municípios na preservação da natureza e no uso sustentável da terra.