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A química da morte e da impunidade

Agressões à saúde e ao meio ambiente por parte de indústrias – especialmente químicas – ainda são comuns. A impunidade favorece os agressores, torna o presente ameaçador e o caminho para o futuro insustentável

Raj Patidar AH/CN/REUTERS
Raj Patidar AH/CN/REUTERS

Dezembro de 1984. Na madrugada do dia 3 uma nuvem com 40 toneladas de gases letais, como isocianato de metila e hidrocianeto, espalhou-se sobre áreas residenciais vizinhas à fábrica Union Carbide Corporation, em Bhopal, na Índia. Três dias depois do maior acidente químico da história, causado por um vazamento num tanque durante operações de rotina, pelo menos 8 mil pessoas estavam mortas. Por omissão de informações por parte da empresa, o atendimento aos sobreviventes foi inadequado. Estima-se que mais de 30 mil pessoas sofreram seqüelas graves, irreversíveis distúrbios respiratórios, lesões oculares e vários tipos de câncer.

A tragédia ganhou destaque internacional, gerou grandes manifestações e levou a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a desenvolver programas de prevenção de acidentes industriais. Passados 22 anos, a água e o solo da região continuam contaminados. Segundo a organização ambientalista Greenpeace, a Dow Química, nova proprietária da fábrica, ainda não deu todas as informações sobre a composição dos gases e seus efeitos à saúde.

A Union Carbide vendeu a empresa e tentou se esquivar da responsabilidade, pagando ao governo da Índia uma indenização irrisória. Hoje, mais de 150 mil sobreviventes com doenças crônicas ainda necessitam de cuidados médicos e uma segunda geração de crianças continua a sofrer os efeitos da herança tóxica deixada pela indústria. A lição de Bhopal parece não ter sido totalmente assimilada. O descaso com a saúde e o meio ambiente ainda prevalece em muitas corporações. De lá para cá, episódios semelhantes – em proporções menores, é verdade – continuam a ocorrer, inclusive no Brasil.

No mês passado, o administrador de empresas Elias Soares Vieira levou ao Ministério Público do Trabalho de Campinas (SP) denúncia de contaminação e prejuízos à sua saúde por metais pesados. Ele acusa a companhia norte-americana Eli Lilly, do ramo químico-farmacêutico, onde trabalhou durante dez anos. Já se passaram outros dez desde que saiu da empresa.

Segundo Vieira, ele e outros colegas foram contaminados devido à exposição, durante o trabalho, a resíduos tóxicos, entre eles alumínio, arsênio, cádmio, chumbo e mercúrio. Essas substâncias provocam problemas neurológicos e câncer, entre outras complicações. “Tive o rim direito retirado por causa de um tumor maligno”, diz. Sua história, e a dos colegas, está contada em detalhes, fotos e documentos no site www.casolillynobrasil.blogspot.com.

Em 2004 a indústria fez uma autodenúncia. Comunicou à Cetesb, a agência de meio ambiente do governo estadual, sua responsabilidade na contaminação do solo e se comprometeu a tomar providências para recuperar a área. Segundo afirmaram técnicos do órgão, do ponto de vista ambiental a situação já estaria sendo resolvida e restaria uma questão trabalhista.

Para Elias, não. O ex-funcionário desconfia de um acordo entre a Cetesb e a Lilly. E diz que a indústria, logo depois de se autodenunciar, pagou indenizações de 2,5 milhões a 10 milhões de reais a ex-funcionários “em caráter reparatório”, como mostram documentos anexados por ele ao processo que move contra a empresa.

Até o fechamento desta edição, a multinacional não atendeu a reportagem da Revista do Brasil para dar sua versão. Localizada entre Cosmópolis e Paulínia, a fábrica foi construída próxima às margens do Rio Jaguari, que abastece três municípios e deságua no Rio Piracicaba. Nos anos 70 e 80 a Lilly foi uma das poucas empresas químicas da região de Campinas que não depositaram seus resíduos no Aterro Montovani, em Santo Antônio de Posse.

Em vez disso, segundo Vieira, cavou poços e valas em seu terreno, nos quais enterrou o material tóxico, e construiu um incinerador que queimava a produção interna e de terceiros. “Parte do terreno foi arrendada e usada para o cultivo de frutas e verduras, que chegaram, inclusive, a ser vendidas à população”, diz.

NECO VARELLA/PAGOSsinos
A contaminação do Rio dos Sinos foi causada por quem deveria evitá-la

Espeto de pau

Por ironia, a irresponsabilidade faz parte do caráter até de quem fatura para garantir proteção à saúde e ao meio ambiente. A Ultresa, empresa que presta serviço terceirizado de tratamento de efluentes das indústrias de couro localizadas na região do Vale dos Sinos (RS), foi apontada pelo Ministério Público Estadual como culpada pelo desastre ambiental do começo de outubro passado. Mais de 100 toneladas de peixes foram mortos no Rio dos Sinos.

A investigação apontou altas concentrações de mercúrio, cromo, benzeno e xileno, todos potenciais cancerígenos. Ficou constatado que a empresa lançava parte dos efluentes diretamente nos afluentes do rio.

O ambientalista Henrique Prieto, do Instituto Martim Pescador, fazia uma expedição pelo rio quando foi surpreendido pelos milhares de peixes boiando, a cerca de seis quilômetros do centro de São Leopoldo. Ele diz que o problema não vem de hoje. “Tem a questão do esgoto doméstico, já que a maioria dos municípios não oferece tratamento, e muitas empresas aproveitam o relaxo da fiscalização, insuficiente, para poluir as águas”, diz. “O lado positivo da tragédia é mostrar que o rio ainda tem vida.”

O mesmo não acontece com o Rio Tietê, no trecho que atravessa a região metropolitana de São Paulo. E nem deve acontecer, segundo especialistas. “É difícil explicar para as pessoas que o maior programa de despoluição deixará, no máximo, suas águas menos turvas”, lamenta Maria Luisa Ribeiro, coordenadora da rede de águas da Fundação SOS Mata Atlântica.

Símbolo do avanço urbano e industrial desordenado, o Tietê era fonte de abastecimento e lazer até o começo do século 20. Entre as décadas de 20 e 40 ganhou algumas barragens com a finalidade de produzir energia elétrica e passou a receber todo tipo de esgoto. Em menos de 20 anos, já estava morto. “As pessoas precisam se conscientizar do seu papel na preservação, na pressão sobre as indústrias. Não adianta ficar só culpando as empresas. Depois, mesmo que haja todos os recursos financeiros, nem sempre é possível recuperar.”

Para não esquecer

Aterro Mantovani
Em Santo Antônio da Posse (SP), entre 1974 e 1987, recebeu 150 mil toneladas de solventes e metais pesados de 61 indústrias, entre elas Johnson & Johnson, Mercedes-Benz, Basf, DuPont. Foi fechado quando a Cetesb identificou excesso de substâncias tóxicas. Só oito de cerca de 40 empresas envolvidas cumpriram acordo para financiar obras de descontaminação.

Acumuladores Moura
No início dos anos 90, foi acusada de contaminar com chumbo trabalhadores, solo e água em Belo Jardim (PE). Segundo o sindicato dos metalúrgicos local, 62,7% dos operários examinados tinham índices de chumbo no sangue quase duas vezes acima do limite tolerável. O chumbo pode atingir o lençol freático. No organismo, causa problemas hepáticos e neurológicos.

Carbocloro Oxypar
Atuando na área química e na petroquímica, usa mercúrio na produção. Em 1990 a Cetesb publicou documento baseado na análise da contaminação das águas, dos sedimentos e dos organismos aquáticos no Rio Cubatão (SP), que margeia a empresa, e multou a unidade várias vezes. Em 1998 um ex-funcionário se aposentou por invalidez por intoxicação de mercúrio e disse ter identificado outros dez casos. A empresa negou.

Cidade dos Meninos
O Instituto de Malariologia de Duque de Caxias (RJ), criado pelo Ministério da Saúde nos anos 40 para produzir inseticidas, deixou 400 toneladas de BHC ao se transferir, em 1957. Acredita-se que mais de 600 crianças do abrigo Cidade dos Meninos, na região, tenham sido contaminadas nos anos 80. Exames identificaram BHC no organismo de 31 moradores num raio de 100 metros da fábrica abandonada.

Cofap
No início dos anos 90 uma área de 160 mil metros quadrados em Mauá (SP) era utilizada pela empresa como depósito clandestino de mais de 40 resíduos tóxicos. Em 1993 a Cooperativa Habitacional Nosso Teto construiu ali o condomínio Barão de Mauá, onde se instalaram 7,5 mil pessoas. Em abril de 2000 um homem morreu e outro teve 40% do corpo queimado após explosão durante obras no condomínio, devido a concentrações de gás metano, derivado da decomposição de lixo urbano. As famílias querem indenização para sair do local.

Shell/Paulínia
Entre 1975 e 1993 a empresa contaminou o lençol freático nas proximidades do Rio Atibaia, região de Campinas (SP), com substâncias usadas na fabricação de inseticidas. Em 1994 foi identificada uma rachadura numa piscina de contenção de resíduos. A empresa teve de construir uma estação de tratamento, mas negou qualquer contaminação. Exames feitos nos moradores dos sítios vizinhos mostraram que 88 apresentavam intoxicação crônica, 59 tinham tumores hepáticos e da tireóide e 72 estavam contaminados.

Shell/Vila Carioca
Nesse bairro da cidade de São Paulo a empresa manteve um armazém de combustíveis e agrotóxicos. Estima-se que 30 mil pessoas que vivem num raio de um quilômetro podem ter sido ou poderão ser afetadas pela poluição gerada ali. Houve confirmação de contaminação das águas subterrâneas da região por benzeno, tolueno, xileno, etilbenzeno, chumbo e outros metais pesados, além de aldrin, dieldrin e isodrin. No armazém foram detectados até 220 miligramas de chumbo em um quilo de solo.

Solvay
A multinacional belga mantém em sua unidade de Santo André (SP) um depósito a céu aberto que contém mais de 1 milhão de toneladas de cal contaminada com dioxina, substância cancerígena. O resíduo tóxico é proveniente da antiga fabricação de PVC. Em 1999 a denúncia chegou a todos os meios de comunicação. A Cetesb e o Ministério Público obrigaram a companhia a empregar tecnologia para descontaminar a água que passa por ali antes de chegar ao Rio Grande, que abastece a Represa Billings, responsável pelo fornecimento de água a mais de 2,5 milhões de habitantes daquela região.

Em março de 2003 o rompimento num reservatório da fábrica de celulose instalada em Cataguases (MG) derramou 1,2 bilhão de litros de substâncias tóxicas no Rio Pomba, um dos maiores afluentes do Paraíba do Sul. A mancha tóxica atingiu rapidamente a calha principal, chegando a sete municípios do RJ. Cerca de 600 mil habitantes ficaram sem água durante uma semana. Das 169 espécies de peixe existentes no rio, 60 foram afetadas diretamente.

Cataguases
Em março de 2003 o rompimento num reservatório da fábrica de celulose instalada em Cataguases (MG) derramou 1,2 bilhão de litros de substâncias tóxicas no Rio Pomba, um dos maiores afluentes do Paraíba do Sul. A mancha tóxica atingiu rapidamente a calha principal, chegando a sete municípios do RJ. Cerca de 600 mil habitantes ficaram sem água durante uma semana. Das 169 espécies de peixe existentes no rio, 60 foram afetadas diretamente. Fonte: Greenpeace