O próximo voo

Concessão de três aeroportos à iniciativa privada causou rebuliço no governo, na oposição e no PT. A dúvida é se os fantasmas são reais ou imaginários

Na posse de Maria das Graças Foster na direção da Petrobras, em 13 de fevereiro, a presidenta Dilma Rousseff destacou a importância estratégica da companhia e lembrou: “Felizmente, sobreviveu a todos os ventos privatistas e persistiu como empresa brasileira, sob controle do povo brasileiro, e hoje exerce papel fundamental em nosso modelo de desenvolvimento”. 

Alegria na bovespa durante o leilão dos aeroportos, os fundos de pensão participaram ativamente (Foto: Nilton Fukuda/AE)

Uma semana antes, em São Paulo, manifestantes protestavam contra o leilão que transferiu ao setor privado o controle de três dos principais aeroportos nacionais. Diziam: “Dilma, eu não me engano, privatizar é coisa de tucano”. Nesse curto intervalo, a polêmica se instalou e mexeu com dogmas e brios, revivendo a peleja entre defensores e críticos do Estado – numa simplificação, entre estatizantes e neoliberais. 

Responsáveis por 57% da carga movimentada no país e 30% dos passageiros, os aeroportos de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, Campinas, no interior paulista, e Brasília foram leiloados por R$ 24,5 bilhões, valor 348% acima do mínimo estipulado. Cada um foi adquirido por um consórcio, com destaque para o de Guarulhos. Seu leilão totalizou R$ 16,2 bilhões, bancados por um consórcio composto pela Invepar – empresa de infraestrutura formada pelos fundos de pensão Previ (Banco do Brasil), Petros (Petrobras) e Funcef (Caixa), além da construtora OAS – e pela Acsa, operadora estatal de aeroportos sul-africanos. O prazo de concessão é de 20 anos. O presidente da Previ, Ricardo Flores, disse que o crescimento da Invepar – conjugado à entrada em novos negócios – amplia a capacidade de retorno do investimento. O fundo do BB tem 36,85% de participação na empresa, que por sua vez representa 90% do consórcio vencedor do aeroporto de Guarulhos.

A palavra “concessão” entrou no debate com força na briga entre PT e PSDB. Os tucanos, na tentativa de marcar um gol, viram uma bola rolando e chutaram de bico. Acusaram o PT de cometer “estelionato eleitoral”, por passar tanto tempo condenando as privatizações. Os petistas formaram a barreira afirmando que o adversário engana a torcida, porque o modelo adotado foi diferente. O barulho aumentou pelo fato de o leilão ter ocorrido ainda sob o impacto de um livro sobre supostas mazelas nos governos FHC (A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr.).

No chamado mercado, a notícia animou observadores e analistas, que – por mais que o governo negue – viram no leilão uma mudança de pensamento. “A privatização de três dos maiores aeroportos brasileiros é, até este momento, a grande realização do governo Dilma Rousseff”, cravou o jornalista Cristiano Romero, colunista do jornal Valor Econômico. Para ele, além de uma “quebra de paradigma” em governos petistas, o fato pode abrir caminho para que outros setores sejam entregues à iniciativa privada, como o portuário.

Membro do diretório nacional do PT, Valter Pomar escreveu artigo para tentar esclarecer: concessão é uma modalidade de privatização. Mas é uma modalidade distinta da transferência de patrimônio, “especialmente quando feita em troca de nada, como os tucanos fizeram com a Vale do Rio Doce”. Outra diferença, destaca Pomar: o PSDB fez “privataria”, segundo ele uma “etapa superior da privatização”, enriquecendo os envolvidos. Por fim, afirma que para os tucanos as privatizações são parte essencial de uma estratégia neoliberal de desenvolvimento, em um modelo de sociedade dominada pelos chamados “mercados”.

Essas são as diferenças. Mas o PT cometeu erros no caminho, prossegue Pomar: “Do ponto de vista tático, a concessão foi economicamente desnecessária e politicamente incorreta”. A estratégia do PT e do governo não é privatizante, mas há tentações no caminho.

Durante as comemorações pelos 32 anos de fundação, em fevereiro, o presidente nacional do partido, Rui Falcão, disse que não se pode confundir concessão com privataria. “Há muito tempo temos concessões de rodovias. As concessões fazem parte da Constituição e o PT nunca votou contra a concessão de serviços públicos, tanto que o transporte coletivo na maior parte das cidades é objeto de concessão e o transporte é um serviço público”, afirmou.

O líder do PT no Senado, Walter Pinheiro (BA), defende a estratégia adotada no caso dos aeroportos. “Ao contrário do que ocorreu com a privatização promovida pelo governo do PSDB, quando empresas estatais de mineração (Vale), de siderurgia (CSN), de telecomunicações (sistema Telebrás) e a Rede Ferroviária Federal foram passadas para a iniciativa privada (em operações até hoje nebulosas), esses aeroportos continuarão patrimônio do povo brasileiro”, sustenta. 

O presidente do Sindicato Nacional dos Aeroportuários (Sina), Francisco Lemos, não vê a questão com tanta simplicidade. “A palavra não é concessão nem privatização. É política neoliberal”, critica, referindo-se ao leilão dos aeroportos. “Quem vai responder pelas consequências negativas é o PT. O partido foi omisso, não participou do processo. Foi tudo entregue nas mãos de tecnocratas. Não foi por falta de alerta.”

protesto

Do lado de fora da Bovespa, sindicatos e centrais se manifestavam contra o leilão (Foto Dino Santos)

Por sua vez, o presidente nacional da CUT, Artur Henrique, receia que isso vire tendência. Para ele, o governo deveria ter enfrentado as dificuldades e restrições impostas pela legislação (como a Lei nº 8.666, de licitações) ou mesmo pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em vez de buscar o caminho “mais fácil”, de conceder uma atividade ao setor privado. “O governo poderia atrair o capital privado mantendo a Infraero (no controle). Se o BNDES empresta os recursos para bancar 80% dos investimentos necessários, por que não fazer o mesmo com a Infraero?”, questiona. Mas ele também diferencia os modelos, já que o governo Fernando Henrique Cardoso teria promovido um “capitalismo sem riscos”. 

Para o jornalista Luís Nassif, enquanto o governo FHC exagerou na liberalização, o governo Lula recuperou o papel do Estado. Mas o ideal, segundo ele, é fazer com que as políticas públicas tenham o cidadão como foco, sem viés ideológico. “É aí que se insere a privatização dos aeroportos – sem abrir mão da capacidade de regulação do Estado”, analisa. Em sua opinião, mais relevante que discutir se há privatização ou não é se fixar na eficiência da gestão pública.

A professora Argelina Figueiredo, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), vê pouca relevância para o processo eleitoral deste ano. “O debate da privatização teve importância na eleição presidencial de 2006, mas acho que não tem para uma eleição municipal”, observa. Mesmo assim, ela percebe na recente polêmica um debate mais ideológico, em busca de algum retorno eleitoral. Ou mesmo uma tentativa quase desesperada da oposição de atingir um governo que vem se mostrando relativamente bem-sucedido.

O processo em si pode ser questionado, mas Argelina nota exagero nas comparações. “Tem uma diferença entre vender para sempre e fazer uma concessão por prazo determinado.” No caso atual, o debate teria impacto se envolvesse instituições simbólicas, como a Petrobras.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, apontou outra diferença. Segundo ele, os recursos não serão usados, como no governo FHC, para pagamento da dívida pública, mas para investimentos. Mesmo assim, o governo não pensa, pelo menos nesse momento, em fazer novas concessões. “Duvido”, reage Francisco Lemos. “É intenção da Secretaria da Ação Civil, da Agência Nacional de Aviação Civil, ampliar esse projeto. Cabe à presidenta Dilma brecar isso e ao partido, se pronunciar energicamente.”

Para o cientista político Fabiano Santos, também da Uerj, recorrer à iniciativa privada nunca chegou a ser um dogma para o governo Dilma nem para o de Lula. “Algum grau de delegação do Estado ao setor privado já ocorreu em diversos momentos. Não vejo uma questão dogmática. Se isso fosse realmente um ponto dogmático, acho que o governo teria feito uma agenda de reversão de privatizações”, afirma.

Mas não se pode dizer que as visões do PT e do PSDB em relação ao papel do Estado sejam idênticas. “Certamente, a concepção é bem distinta. Claro que os dois governos trabalham dentro de realidades. Mas é curioso que não se lembre das críticas pela ‘volta ao estatismo’ que teria marcado o segundo governo Lula, quando Dilma já era a grande arquiteta.”