Crack para exportação

Vício adquirido no corte de cana é disseminado para o interior. Se cidades grandes e ricas estão mal preparadas para enfrentar a questão, imagine as pequenas e pobres

Diego Padgurschi/Folhapress

Cachimbo feito com peças de PVC: corpo maltratado pelo corte da cana de açúcar e neurônios queimados pelo crack

O crack está presente no trabalho de canavieiros, sob jornadas e condições extenuantes. E o vício não se esgota no canavial, pois acompanha o usuário no retorno a seu local de origem. Enquanto migrantes cada vez mais jovens de estados como Maranhão, Piauí, Minas Gerais, Pernambuco se deslocam para mergulhar na safra, a droga nas pequenas e médias cidades do interior se dissemina. Um estudo da Confederação Nacional de Municípios identifica problemas com a circulação de entorpecentes em nove entre dez cidades pesquisadas.

No final do ano passado, em plena safra da cana, a reportagem visitou Guariba (SP). Os trabalhadores se agrupam em torno das 5h30 para seguir aos canaviais nos ônibus das usinas. O assunto os constrange. Migrante de Codó (MA), Lindiana Soares, de 34 anos e aparência de 50, passou a consumir a droga por influência dos colegas e do marido. “A praga da cidade grande pegou na roça”, diz. Ela conta que em tempo chuvoso o cortador ganha menos, somente o valor da diária, proporcional a um salário mínimo por mês. Alguns gastam o dinheiro do dia comprando pedra dos traficantes da área.

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A situação em Araçuaí (MG), de pouco mais de 36 mil habitantes, ilustra como funciona o ciclo do vício. Seus moradores tentam se adaptar ao aumento da criminalidade e da violência. O município tem sua cracolândia à beira do Rio Jequitinhonha. O ­psicólogo Álbano Silveira Machado conta que o consumo é observado principalmente entre jovens que saem para o trabalho rural com o objetivo de ganhar o próprio dinheiro. “Eles querem coisas como moto, tênis, som, agradar a namorada”, afirma.

As cidades-polo do médio Jequitinhonha, caso de Araçuaí, são visadas também pela proximidade das rodovias. “Quando os migrantes chegam (das lavouras), procuram onde comprar crack e maconha, e acabam inclusive viciando outros jovens que ficam aqui”, diz Machado.

Sem opções, as “viúvas de marido vivo” – como são chamadas as mulheres dos trabalhadores rurais – ficam em casa, sozinhas, durante os períodos das safras. Elas temem que os familiares retornem dependentes. Segundo Maria Aparecida Moraes, professora de Sociologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), pesquisadora do tema, mães e parentes criam comunidades para trocar experiências. “Lá no Maranhão, as mães sempre diziam que tinham medo que os filhos voltassem para casa viciados, porque ali na região havia muito disso”, diz.

Falsa sensação

Segundo um estudo divulgado em setembro pela Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack da Assembleia Legislativa de São Paulo, a droga está presente em 531 das 645 cidades paulistas, e falta tratamento. Familiares dos que adquiriram o vício nas lavouras procuram ajuda em ambulatórios regionais ou universitários. De acordo com a pesquisa, 79% dos municípios paulistas não têm leitos para dependentes no Sistema Único de Saúde (SUS). Clínicas de reabilitação ainda são escassas. A mais próxima de Guariba fica em Pradópolis, na região de Ribeirão Preto. Os custos, porém, são proibitivos.

Durante lançamento do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas em dezembro, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, reconheceu as deficiências na rede pública para enfrentar a questão – principalmente nas áreas rurais. O plano, parceria entre os Ministérios da Saúde, da Educação e da Justiça, tem como meta a instalação de 430 unidades de acolhimento até 2014. E depende da ação conjunta dos poderes municipais, estaduais e federal na prevenção e na repressão ao tráfico e no tratamento dos dependentes químicos.

No meio rural, o avanço do vício é explicado por especialistas pelo fato de a droga ser vista pelo usuário como “válvula de escape” diante das condições de trabalho. Seria a busca de um suposto estímulo físico para aumentar a capacidade produtiva. “É uma falsa sensação de que vão se tornar super-homens”, diz o padre Antonio Garcia Peres, coordenador da Pastoral do Migrante de Guariba. Segundo ele, que faz visitas regulares aos alojamentos oferecidos pelas usinas, o consumo é aberto, mesmo sob risco de expulsão do usuário flagrado. “O trabalhador não para nem pra comer pra poder aumentar sua produtividade.” 

A União da Agroindústria Canavieira (Unica) nega que esses problemas sejam provenientes do vício na colheita e tenham ligação com as condições extenuantes de trabalho. O diretor de comunicação corporativa da entidade, Adhemar Altieri, afirma que “não faz sentido” isolar um setor para discutir os impactos do crack. “É a mesma coisa que você falar do uso de crack entre padeiros, ou ir a uma montadora de automóveis numa mudança de turno e ver se existem pessoas que usam crack”, comparou. “Você provavelmente vai encontrar algum usuário. O que significa isso? Que o crack invadiu a indústria automobilística? Obviamente que não.”

A socióloga Arlete Fonseca de Andrade, do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), relaciona o vício entre trabalhadores do campo ao seu histórico sofrido. “A droga entra na equação como um fenômeno para fazer com que eles pertençam a um grupo, mesmo que seja o pior de todos”, avalia. Ela observa que o agronegócio tem forte influência nesse movimento em que as pessoas se deslocam em busca de trabalho e renda por um período em polos de produção agrária, mas depois retornam à localidade de origem. Esse tipo de migração do vício acaba, portanto, sendo uma especificidade do setor.

Colaborou Sérgio Vasconcelos, em Araçuaí

 

 

Epidemia?

Lucas foi para o corte pela primeira vez há dois anos, em Franca (SP). Conheceu a droga em um dos alojamentos da empresa. Não teve mais vontade de voltar para os canaviais e, para alimentar o vício, foi ao fundo do poço. “Perdi a dignidade, a honestidade, o caráter.”
Lucas vive com a mãe na região conhecida como Baixada, em Araçuaí. “Fui parar na cadeia. Estou em regime semiaberto, cumprindo pena por tráfico e roubo. Quero parar, mas não consigo”, diz o rapaz, que por duas vezes tentou uma clínica na cidade de Montes Claros.
Em um barraco desarrumado e escuro, com muito lixo pelos cantos, mau cheiro e vasilhas sujas na pia, eles preparam sobre a mesa a droga para fumar. A pedra foi conseguida ali pertinho.Cláudio, 42 anos, e Lucas, 22, partiram para o corte de cana em São Paulo para ganhar dinheiro nas usinas de açúcar e canaviais e voltaram para Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha (MG), viciados.
“Conheci o crack há 13 anos, na cana”, conta Cláudio. “Perdi tudo. Separei da mulher e moro de favor com um amigo”, diz o ex-boia-fria, pai de uma jovem de 21 anos. “Em Ituverava, eu buscava a droga para os outros peões. Andava 15 quilômetros até uma boca.”
“Aqui tem mais de cinco bocas”, conta Cláudio. Em poucos anos, ele perdeu a família, os dentes e a saúde. “Emagreci e sinto muito cansaço.” Atualmente, para sobreviver, faz bicos. “Se ganho R$ 30, gasto com pedra. Fumo pelo menos R$ 10 por dia.”
O sargento Orias Chaves, da Polícia Militar de Araçuaí, constata a força da droga e a fragilidade da sociedade: “O consumo se alastra pelas comunidades rurais e bairros pobres. Já chegou à classe média. Podemos dizer que é uma epidemia”.
Sérgio Vasconcelos